Na semana passada, uma faxineira confundiu uma obra de arte com lixo e “limpou” a sala de exposições do Museion Bozen-Bolzano, no norte da Itália. A obra da dupla de artistas Sara Goldschmied e Eleonora Chiari intitulada Where shall we go dancing tonight? era composta de garrafas vazias, gimbas de cigarro e confetes espalhadas pelo chão.
Em fevereiro de 2014 a obra de Paul Branca feita de papelão e jornais velhos cobertos por farelo de biscoito foi jogada fora da galeria de arte Sala Murat, no sul da Itália. A representante da empresa de limpeza declarou que a faxineira estava apenas “fazendo seu trabalho”.
Em 2004, um saco de lixo contendo lixo, e que fazia parte de uma instalação de Gustav Metzger na Tate Galery em Londres, foi jogado fora, acidentalmente, por uma faxineira. O objeto foi recuperado pelo museu, mas o artista o substitui por um novo saco de lixo. O museu informou que, agora, a instalação é coberta durante a noite para que nada seja removido novamente. Os funcionários também foram avisados que o saco de lixo faz parte da obra.
Em 2001, uma exposição do britânico Damien Hirst foi “limpada”. A equipe de faxineiros confundiu a instalação, composta por cinzeiros cheios, copos de café pela metade, garrafas de cerveja vazias e jornais espalhados, com lixo. Acabou jogando tudo fora.
Em 1973, durante uma festa realizada no Museu Schloss Morsboich, na Alemanha, as organizadoras do evento, precisando lavar alguns copos, limparam uma banheira suja com gordura, vaselina e ataduras a fim de usá-la como pia. A banheira era uma obra de Joseph Beuys e a cidade foi condenada na justiça a pagar 40 mil dólares de indenização ao artista.
Treze anos mais tarde, um dos numerosos Fettecke (“Cantinho de sebo”) do artista foi também destruído acidentalmente pelo zelador da Academia de Arte de Düsseldorf, o que resultou em sentença semelhante.
“Lixo” é trazido para a arte há mais de um século. Desde às assamblages de Rauschenberg da década de 50, o Merzbau de Kurt Schwitters (1923), e já desde o Picasso da fase do Cubismo Sintético (1912). Algumas questões se afiguram curiosas… Poe exemplo, onde estão os originais (hoje perdidos) dos ready mades de Duchamp? E principalmente: em que precisamente consiste o “original” de um ready made?
Em outro artigo mencionamos um paradoxo insuperável da arte conceitual: se uma garrafa é uma garrafa, o âmbito metafórico da linguagem deixa de existir. Quando uma coisa é ela mesma, chegamos ao ponto final da experiência artística – ou melhor, ao início dela, uma vez que cabe à arte rearticular a relação ente significados e significantes introduzindo as “coisas” do mundo no interior da linguagem. Se elas significam o que efetivamente são não estão imbrincadas no âmbito da arte.
Hoje proponho outra reflexão aqui. Consideremos que não tenha sido um “equívoco” – os faxineiros que destruíram aquelas obras eram na verdade artistas contemporâneos disfarçados realizando intervenções por meio de um diálogo artístico com as obras. Deste modo parece melhor? E se assim for, essa atitude performática dos faxineiros não seria simétrica às obras? Não estariam elas no mesmo nível de incompreensão pública que a produção em questão?
Esse tipo de coisa aconteceu amiúde na história: as escolas de época pouco poupavam seus antecessores, destruindo incontáveis afrescos e esculturas para substituí-los pelo novo gosto. No Renascimento isso foi particularmente comum.
Um caso brasileiro é o dos painéis panorâmicos pintados por Victor Meirelles. Idoso e perseguido pelos republicanos quando da queda do Império, uma alternativa de sobrevivência ao artista foi pintar imensos panoramas do Rio de Janeiro, que se fechavam circularmente, expostos na antiga Rotunda da Praça XV de Novembro (Rio de Janeiro, 1891), uma ação pioneira. O público entrava nessa espécie de cilindro onde por todos os lados via uma pintura contínua de paisagens cariocas, como se estivesse numa montanha. Os gigantescos painéis, deixados ao relento, deterioraram-se, sendo “retalhados e usados pelos carregadores para cobrir mercadorias”[1]. Hoje, restam apenas estudos.
A incompreensão é algo a que artistas estão acostumados. Porém há uma enorme diferença entre os casos relatados acima e o que acontece sistematicamente com a “arte pós-moderna”. Essa é vítima (e cúmplice ao mesmo tempo) de uma incompreensão obstinada – com a diferença de que não é o público apenas que não compreende os artistas – os artistas também não fazem a menor questão de compreender seu público.
Mesmo os espectadores do “primeiro mundo” jamais se acostumaram de todo com performances, instalações, vídeoarte, etc – categorias que preenchem grande parte da produção atual, e que não foram jamais absorvidas praticamente por público nenhum. Se a intenção era subverter os papeis entre “espectador x artista”, a tentativa foi mal sucedida (a prova é a contumaz incompreensão das obras contemporâneas, em especial conceituais, aceitas pelos museus e rejeitadas pelo público há mais ou menos um século). Uma espécie de piada mal contada da primeira vez, e que tenta se impor à custa da repetição. Tampouco funcionou a tentativa de abalar os pilares da sociedade burguesa. O gosto conceitual é coisa de elite. Como, especialmente no Brasil, ninguém está interessado em arte nenhuma, o campo artístico pode se fechar e continuar fazendo como se nada acontecesse, como se o público não existisse. Afinal ninguém reclama. Mas francamente, eu levo os processos de construção e disputa simbólicas muito a sério e me sinto insultado com uma grande quantidade de obras que vejo quase todas as semanas… Obrigações do ofício!
Esforcei-me por analisar as obras destruídas por “engano” pelos faxineiros das instituições. Nossa ignorância não deve se esconder atrás do insulto: é preciso transcendê-la e esclarecer-nos quanto à intenção de quem quer que seja, em particular a dos artistas, que muitas vezes têm coisas a dizer. Mas, no caso as obras não eram apenas ruins (isso seria justo). Elas são cínicas. E isso é intolerável; em qualquer profissão. O que você sente diante de um médico, um advogado ou de um burocrata cínico?
Convivo com artistas e estudantes de arte todos os dias. Mesmo entre eles é praticamente totalitária a concepção, por exemplo, de que pintura modernista abstrata ou expressionista é “arte contemporânea”. E entre eles, esta última é quase sempre uma piada pronta. Entre eles, é também comum confundir-se Hiper-realismo Contemporâneo com aquele produzido na década de 60 nos EUA. E mais comum ainda é o público em geral se perguntar, diante da arte objetual: “mas isso é arte?”
Quando há um alijamento tão completo entre artista e público, é sinal de que a relação é impossibilitada por um agente externo – ou um dos dois está em crise.
Seguindo nossa reflexão, aceitemos por um instante a opinião de muitos artistas de que “a arte não se explica”, de que “explicar é função do critico”, e admitamos que o público é, afinal simplesmente ignorante. Aceitemos por hora a ideia de que, se o sujeito passar por um processo de educação nesse sentido, poderá conhecer a arte contemporânea e só então optar se de fato gosta dela ou não (o que já estaria próximo de uma democratização da arte). Admitamos também que um processo educacional em curso privilegie a leitura da produção tradicional (pintura figurativa) e a legitime exclusivamente enquanto arte – fator que permite às pessoas conhecerem pinturas tradicionais, facultando assim um gosto estético direcionado a elas.
Se assim é, objetamos o seguinte:
Minha pesquisa de iniciação científica na Universidade tinha como tema a “Educação para uma compreensão crítica da arte”, vinculada à linha de pesquisa em Ensino das Artes na chave dos estudos de “pós-modernismo crítico”. Minha tarefa, além de traduzir livros sobre o tema, era entrevistar professores de Artes do ensino fundamental público para, através da análise de seus discursos, desenvolver estratégias de aprendizado no campo da interpretação das imagens. O que pude constatar foi a total falta de preparo dos profissionais formadores nesta área. Sim, eles seguiam diretrizes curriculares que estacionavam no modernismo – ignorando quase que por completo o que sucedeu antes ou depois dele.
Sem querer hipostasiar conclusões de uma pesquisa com recorte específico, arrisco dizer aqui que há tanto falta de informação a respeito da arte clássica quanto da arte contemporânea. Saber o nome de Da Vinci e de Michelangelo não faz de uma pessoa conhecedora de belas artes, tampouco recusar de antemão a arte contemporânea…
Se há algum motivo real da incompreensão do público quanto à arte não é senão por conta do hermetismo da produção contemporânea, que no afã de “fomentar experiências outras”, desconsidera solenemente a experiência original e atávica da população, não se importando em fazer qualquer mediação – a mediação necessária (que o modernismo operou) entre uma historicidade de colonização secular mal estruturada do gosto e uma consciência estética contemporânea dominada e arrasada pela publicidade e pelo marketing. E essa consciência estética atrasada forma pessoas dispostas, não a confundir (como os faxineiros dos museus) arte com lixo, porém lixo com arte…
[1] ROSA, Angelo de Poença e outros. Victor Meirelles de Lima (1832 – 1903). Rio de Janeiro, Ed. Pinakotheke, 1982, p. 112
Imagens do artigo dos artistas TOM NOBLE & SUE WEBSTER:
- TOM NOBLE & SUE WEBSTER, 1998 | “Dirty white trash” (6 months’ worth of artists’ trash, 2 taxidermy seagulls, light projector, dimensions variable)
- TIM NOBLE & SUE WEBSTER, 2003 | “A hole” (Welded scrap metal, wood, light projector, 85 x 30.5 x 60 cm)
- TIM NOBLE & SUE WEBSTER, 2003 | “Kiss of Death” (34 taxidermy animals, animal bones, light projector, metal stand, 80 x 50 x 180 cm)
- TIM NOBLE & SUE WEBSTER , 2010 | “Self imposed misery” (wooden stepladder, discarded wood, light projector, 78.5 x 403.5 x 224 cm)
- TOM NOBLE & SUE WEBSTER, 2000 | From f**k to trash” (Acrylic on medium-density fibreboard, 122 x 122 cm)