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FRANÇOIS CHARTIER | "Art for artsake", óleo sobre tela, 2009 (91 x 91cm)

FRANÇOIS CHARTIER | “Art for artsake”, óleo sobre tela, 2009 (91 x 91cm)

Todos os dias recebo a newsletter da Drawing Academy de Londres, onde técnicas são abordadas e perguntas respondidas. Quase sempre discordo das opiniões que leio. Os artistas e professores da Drawing Academy defendem a autonomia da arte, que ela deve ser o emissário da beleza, etc. São também contra a cópia de reproduções fotográficas – fato compreensível num atelier “clássico”… O caso é que é impossível executar “cópias”. Já dissemos que não existe cópia: nenhum desenho é uma reprodução automática e mecânica. Mas hoje a questão é outra. Eles respondem por mailing a pergunta de uma aluna:

– Como se pode desenhar exatamente o que vemos? É algo para o que eu me esforço, mas que, porém cria um obstáculo quando eu quero desenhar a partir da minha imaginação…

A resposta é muito interessante:

Desenhar o que se vê resulta em equívocos inevitáveis. Ao invés disso, você precisa desenhar o que você sabe. A questão é que você não vê o que você não sabe.

ROBERTO BERNARDI | "Livelli", óleo sobre tela, 2012 (100 x 150 cm)

ROBERTO BERNARDI | “Livelli”, óleo sobre tela, 2012 (100 x 150 cm)

Eu responderia exatamente o contrário. É verdade que “não vemos o que não sabemos” (e é preciso ver para desenhar porque só se desenha o que se vê). No início era o verbo… é a pura verdade: primeiro vem o verbo, depois a coisa. Enquanto eu não disser para meus alunos que entre o ombro e o pescoço há um volume significativo formado pelo músculo Trapézio, eles continuam fazendo os ombros proeminentes, e a parte posterior do pescoço achatada. Se eu não mencionar a luz refletida incidindo dentro da sombra própria de um objeto, eles não a veem. Então falo sobre ela e aponto no objeto: aí eles enxergam. Esteve o tempo todo ali, na transparência do óbvio: era invisível aos olhos porque era invisível à razão.

No filme “Quem somos nós” (2004) é contada a história de um índio que vai até a beira da praia e durante sete dias olha fixo para o horizonte. Fora-lhe revelado que algo viria do mar. Apenas no sétimo dia, porém, ele vê: gigantescas caravelas portuguesas ancoradas há sete dias na costa americana. O índio demorou esse tempo todo para enxergá-las porque uma caravela estava fora do seu plano de realidade cognoscível.

CHUCK CLOSE | "Self Portrait", acrílico sobre tela, 1968 (273 x 212 cm)

CHUCK CLOSE | “Self Portrait”, acrílico sobre tela, 1968 (273 x 212 cm)

 

É aí que reside de fato a questão da cópia ser ou não arte. É uma questão de método. É muito comum desenhistas que se baseiam no mise au carreau (o “quadriculado” na imagem de referência transposto em escala para o papel do desenho) não saberem desenhar dal nudo ou dal naturale como se dizia na antiga Academia (dal vero, como dizem os italianos hoje), ou seja, a partir da observação direta de modelo vivo. Essa questão, derivada da pergunta levantada no mailing, é essencial para os desenhistas: é impossível desenhar imediatamente o que vemos. A visão deve antes passar por um processo de mediação, pois nenhuma coisa se apresenta diretamente aos olhos.

Além dessa impossibilidade, que se poderia dizer de ordem psíquica, há outro fator, de ordem técnica: aquilo que vemos pertence à tridimensão e é constituído por volumes. Para essa coordenada, há apenas uma correspondência no desenho: a solução gráfica (ou plástica). Quer dizer, o modelo que vejo possui uma dimensão a mais (profundidade), cuja representação devo sintetizar no plano bidimensional do papel. Essa conversão necessária impede que aquilo que é visto seja reproduzido de forma idêntica, literal. O desenho carrega um paradoxo em seu âmago: é preciso alterar a realidade para que ela se pareça realista (ou verossímil).

O professor do Drawing Atelier completa assim sua resposta:

1) Se você não sabe que a linha dos olhos divide a cabeça exatamente ao meio, você tenderá a desenhá-los mais altos do que realmente são;

2) Se você não sabe que a distância entre o limite do queixo e a base do nariz é do mesmo tamanho que o nariz, você fará a parte inferior da cabeça menor do que é;

3) Se você não sabe que a distância entre os olhos é igual ao comprimento de um olho, terá dificuldades em desenhar corretamente esta proporção.

JASON DE GRAAF | "The sphinx of Delft", acrílico sobre tela (24 x 48")

JASON DE GRAAF | “The sphinx of Delft”, acrílico sobre tela (24 x 48″)

 

Ele tem razão em seus conselhos, funciona. Porém, as proporções aludidas são ideais, ou seja, ninguém as possui realmente. Auxiliam no desenho de imaginação, mas atrapalham na prática de modelo vivo. De qualquer modo, é preciso “dizê-las”, apontá-las no modelo para que se tornem visíveis ao desenhista. Nancy Etcoff, no livro “A Lei do mais Belo” (1999), reúne inúmeras pesquisas de antropometria dedicadas a comparar as proporções da estatuária grega com as de pessoas reais vivendo hoje na Grécia. Das centenas de cabeça medidas, nenhuma – absolutamente nenhuma tinha as proporções das esculturas, evidentemente. Nem era preciso se dar ao trabalho de pesquisar: os cânones da arte existem na medida em que não se aplicam na realidade: são ao mesmo tempo uma média e uma idealização.

Daí que em arte nunca se “copiou” ou se reproduziu a realidade fenomênica, a substância física das coisas: tudo fora recriado pelos artistas. Se quisermos realmente entender a nova figuração contemporânea, devemos reformular as questões do desenho, resituá-las de modo a frustrar as expectativas onde são esperadas a fim de encontrar novas respostas.

STEVE MILLS | "3 Faces of Steve", óleo sobre tela, 2012 (36' x 48 polegadas)

STEVE MILLS | “3 Faces of Steve”, óleo sobre tela, 2012 (36′ x 48 polegadas)

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8 pensamentos em “Por que é impossível desenhar o que vemos?

  1. Ótimo texto.Há coisas no desenho que desconheço completamente. Por falta orientação e prática diferenciada percebo que muitos desenhistas estarão condenados ao ostracismo da culturalização pop da construção visual de novas imagens.

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  2. A metáfora do índio levando uma eternidade para perceber as caravelas ancoradas, para explicar a dificuldade de se desenhar algo a partir de um objeto dado, ficou bem explícito pelas assertivas que vem na sequência…mas por mim mesmo jamais entenderia, porque o objeto a ser copiado encontra correspondência na minha realidade cognitiva pelo menos a grosso modo.

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    • Obrigado pelo comentário! A rigor “conhecemos” os objetos de nosso cotidiano, de fato estão circunscritos em nosso campo de realidade. Mas em geral, conhecemos apenas sua dimensão funcional: vemos um “copo” e enchemos com água, vemos uma “cadeira” e sentamos, uma “mesa” e apoiamos os cotovelos nela, etc. A dimensão estética da maioria desses objetos nos passa despercebida. Parece estranho, mas basta comparar com a música – o músico que possui ouvido absoluto é capaz de encontrar notas e melodias em sons que para nossa realidade não passam de batuques de máquinas, ruídos dispersos e sem sentido… O desenhista é obrigado a fazer um grande esforço de observação para realmente “enxergar” o seu modelo – por mais que julgue que o conheça. Vale aqui um pequeno teste: para ver o quanto você conhece da forma de um “clips”, de uma “caneta BIC”, ou de um “prendedor de roupas” (daqueles clássicos de madeira), p. ex. procure desenhá-los a partir da imaginação, sem vê-los… Aposto que você terá uma surpresa! Abraço, Gustavot

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  3. Olá, Gustavo… gostei muito do seu artigo. Também sou professor de desenho e concordo plenamente com a sua opinião. Por exemplo, no desenho de retratos os olhos dificilmente ficam do mesmo tamanho, quase sempre o rosto está em algum ângulo em que um olho será sempre ligeiramente menor que o outro. Também gostei muito da forma como você escreve, seu estilo. Parabéns. Meu site é http://carlosdamascenodesenhos.com.br adoraria fazer uma troca de posts com você. Abraço.

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  4. Pergunta: se temos q aprender as proporções (saber e ter conhecimento sobre o motivo a ser desenhado, por exemplo a cabeça humana), de onde vem esse conhecimento?

    Alguém, em algum ponto da história (há quem diga q foi um tal de Leonardo…) observou, sem TER esse conhecimento, e o FORMULOU, provavelmente baseado em muito raciocínio lógico e empirismo. Além da nossa querida observação. Ou seja, essa pessoa, ou grupo de pessoas, enxergou a caravela logo que a viu.

    Ai vem a pergunra 2: por que as pessoas que se dispõem a aprender a desenhar a realidade hoje não podem, ou não conseguem, repetir esse processo empírico e são quase que obrigadas a usar esse modelo?

    Longe de mim negar ou repudiar tal procedimento. Recentemente me dediquei ao estudo do que chamamos Fundamentos de desenho e percebi como o conhecimento sobre nosso motivo de desenho é importante, tanto quando desenhamos da realidade qunto da imaginação.

    Mas no que tange o apredizado desse processo, não existe outra forma?

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    • Boa noite Maurilio!
      Obrigado pelo retorno…
      Da Vinci foi de fato um dos pioneiros do empirismo, mas é significativo que este só tenha aparecido no Ocidente no século XV, não?! O que os medievais e os homens do período clássico tinham, que não conseguiam “enxergar a realidade”?! A ideia que sugiro no texto é a de que aquilo que vemos depende menos da percepção sensível da retina do que de uma espécie de “regime de visualidade”, uma estruturação de coordenadas simbólicas que nos permitem qualificar o que vemos. O sistema de proporções da figura humana exposto pelo mesmo Leonardo não é de modo algum baseado na observação direta – o “Homem Vitruviano” é uma tentativa (aliás, cheia de equívocos) de aplicação prática das teorias matemáticas de Vitrúvio, um arquiteto romano que escreveu um tratado sobre o assunto no século I. Como eu disse: primeiro se afirma e conceitua; depois se observa.

      Quanto à segunda questão: é a mesma coisa. O fato de que um artista conseguiu “ver as caravelas” não faz com que outro consiga. Todo desenhista tem de passar, como sabes, por essa “prova” da visão. Não acredito em outra forma de se conceber o desenho e seu aprendizado, senão por meio da observação direta…

      Abraços,
      Gustavot

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