O conhecido discurso da arte contemporânea parte do princípio inequívoco de que todo espectador é burro.
Presente em uma cadeia de reverberações entre ementários de disciplinas acadêmicas, Editais e textos curatoriais – seus pressupostos são “questionamentos”, “pensares” e “questões”, projetando desta forma um público leigo permanentemente alienado dos temas abordados, chafurdados num consumo desenfreado e no entretenimento barato (em suma, um público que não vai a museus). Mas sabemos que quem visita salões e vernissages já está imune de certa forma às armadilhas da indústria cultural. É como se ao artista 1) coubesse ensinar os demais acerca dos conteúdos da vida contemporânea e 2) como se somente o artista fosse capaz de tais formulações, reservando o direito de ser o profissional mais indicado para as elaborar.
A despeito da Filosofia e da Ciência, por algum obscuro motivo coube ao artista contemporâneo colocar em questão os aspectos fundamentais de sua época, num alinhamento muitas vezes pouco justificável às Ciências Sociais (que possuem, elas sim, técnicas para desempenho desta função).
Como tal concepção narcísica só é possível no intramuros da Academia – cuja metodologia se operacionaliza por meio da “gestão de projeto” (Editais e concursos) – a arte contemporânea toma de empréstimo seu léxico, termos e conceitos: “investigação”, “pesquisa”, “discussão”, “indagação”, “processo”, “resultados”, “contaminações”, “estratégias”, “dispositivos”, etc, etc. Seus temas não são diálogos diretos com o mundo e as instituições: são interfaces entre estes e a Academia, onde o mundo passa a figurar como objeto de estudo e especulação científica. Por isso normalmente os discursos artísticos são tautológicos, inferências dos próprios discursos sobre o mundo – e não reflexões diretas. A implosão da crítica, num contexto paradigmático de suposta invalidez de todo e qualquer padrão normativo, e a submissão à Academia impossibilita a arte de recorrer a um ferramental próprio de conceitos.
O resultado é um contraditório afastamento do público, justamente quando o objetivo-meta seria aproximar a arte do “mundo real”, retirando-a de um hipotético lugar de contemplação-passiva para fins de uma postura crítica em relação ao meio. Desde os anos 60 que as estratégias artísticas orientam-se num sentido de inserir o público politicamente no mundo (como se aquele não fizesse mais parte dele do que o artista), facultando reflexões críticas (como se o público fosse incapaz disso). Seguindo essa linha e com a intenção de implodir a limitação das galerias e ampliar a percepção sobre os contextos urbanos, a arte contemporânea redundou num universo ainda mais fechado, porque hermético, endógeno e homogêneo.
O artista que não percebe a importância da arte em criar resistências simbólicas contra a dominação ideológica e material do capitalismo é, no mínimo, um cidadão pouco inteligente; mas, afinal que poder real a arte contemporânea possui de intervenção efetiva no mundo, quando se torna mero comentário discursivo acerca das teorias sobre realidade fenomênica? Se sequer se comunica com seu público mais imediato? A intervenção simbólica sem lastro no movimento de massas tem pouca ou nenhuma repercussão política; torna-se, quando muito, polêmica pontual; a recontextualização meramente sígnica dificilmente interfere no mecanismo ideológico, e é normalmente absorvido por ele – um dos exemplos mais notáveis é o prêmio PIPA (um dos maiores prêmios pecuniários da arte contemporânea), que elege sempre entre seus indicados obras de contestações políticas contra o mercado e a alienação, ao passo que recebe subvenção financeira de uma partnership mantida com recursos do especulador multibilionário Warren Buffett (quarto homem mais rico do mundo), que opera uma das maiores consolidações de conglomerados midiáticos do mundo.
Por fim, a Arte Contemporânea vive sob a crença de que o “discurso precede a apreciação” e substitui a práxis pelo conceito; o visual pela palavra.
Numa incessante pilhagem à Historia da Arte, tecendo tramas inextricáveis de diálogos com o passado, julga-se porém acima da técnica (fenômeno esse que vertebrara todas as escolas históricas) ao invés de conceber o artista ao alcance da técnica. O maior sintoma disto é que na mais icônica expressão do discurso da arte contemporânea – o Edital, tornou-se indispensável hoje o quesito: “Argumentação conceitual do projeto (clareza e coerência de argumentos que justifiquem a proposta)”.
O ponto de inflexão que deu origem ao distanciamento da técnica e aproximação da teoria foi a ruptura com o establishment da palavra “expressão”. Até o século XIX, “expressar-se bem” referia-se ao artista que dominasse as regras de um fazer; após isso a especificidade da visão subjetiva do fazedor de imagens passou a integrar o registro, tornando-se parte constitutiva dele. A arte então passa a valer como registro pessoal, menos que um esforço coletivo de apreensão do simbólico. Com isso, a visão do artista se sobrepõe à obra, demandando esta um novo valor: a novidade.
Um dos resultados diretos da transformação do termo “expressão” foi de fato a incidência do conceito de “novo” – a arte deve se manifestar através da “criação individual”, passando a “novidade” a ser investida de valor supremo. Este valor está ainda incorporado no discurso da arte contemporânea, e podemos encontrar novamente um exemplo prático disso nos Editais (que regulam o fato e o ato artístico na contemporaneidade) com o quesito: Originalidade (inovação e ineditismo da proposta)
Mas a “originalidade”, no entanto, enquanto valor recente na história da arte, não deveria excluir as técnicas e temáticas tradicionais, uma vez que o fundamento da criatividade está calcado numa interseção indissociável com a tradição:
A obra criada não deve ser vista como uma consequência exata da ideia, ou mesmo do impulso que a motivou, uma vez que o artista assenta a criatividade no confronto com os suportes, os meios, as suas limitações e virtuosidades técnicas, no acaso e pela ação daquilo que conhece. A obra constitui-se, ela própria, num eixo simbiótico, na medida em que concentra o artista, a história da arte e o observador, e assim é acrescida de significações e transcende o contexto em que foi criada, fazendo com que a sua leitura seja sempre instável e pluriforme, dependendo não só do espaço em que é experienciada, mas também dos seus intérpretes. (…) Em termos descritivos podemos designar a criatividade como um ato de transformação ou modificação (sendo que a qualificação do ato em si como sendo criativo está a cargo das convenções culturais em que ele é inserido). É por esse fato que a criatividade não consiste necessariamente na produção de algo completamente novo (até mesmo, como já verificado acima, não existe nada que não seja o resultado transformado e adaptado daquilo que já conhecíamos). No entanto, o ato criativo poderá ser mais bem percebido enquanto processo transformativo – que se compreende pela combinação de elementos existentes, que são vistos como estando separados ou sendo mesmo incompatíveis. [1]
Outra justificativa da necessidade do discurso para apreciação da obra é em geral expresso desta maneira “a participação ativa do expectador na construção de sentidos suscitada por uma obra artística induz à ruptura com a lógica do olhar habituado a códigos socialmente pré-estabelecidos, etc”. Atribui-se assim a responsabilidade de decodificação de uma obra calcada na subjetividade do artista ao público, e o artista adjudica de se referenciar em significantes simbólicos socialmente convencionados/instituídos. Mas a intenção meritória de sensibilização do olhar pode resultar em seu oposto: a banalização do olhar onde sua instância se faz mais necessária – nas artes visuais. Caso o expectador não consiga “dialogar” com a produção (respondendo à demanda de significado codificado elaborada pelo artista) o que resulta é pura e simplesmente incompreensão; isso é o mais corrente.
[1] BERNARDINO, P. Arte e tecnologia: intersecções. ARS, São Paulo, vol.8, nº 16, 2010.