
ANNEMARIE BUSSCHERS (técnica mista)
Minha intenção é só dizer coisas óbvias: sempre a evidência mais banal. Porque o significado mais profundo – aliás, o único significado possível às coisas, reside precisamente na obviedade.
Mesmo isso é óbvio e fácil de argumentar: quando um filósofo ou cientista passa anos investigando um problema e, de repente o descobre, bate com a mão na testa e diz “mas é óbvio! como é que eu não tinha visto isso antes, estava na minha frente” (lembrem-se do famoso “Eureka” de Arquimedes). Não tinha visto porque estava diante do seu nariz: e é justamente aí o único lugar que nós não podemos ver.
Sofremos, enquanto espécie, uma triste contingência: o olho humano é cego. O aparelho visual, enquanto sistema, pode muito bem funcionar perfeitamente – se o cérebro não fizer a devida correspondência de decodificação das sensações luminosas recebidas pela retina, tudo passa em branco. Ou em preto: não enxergamos nada. O caso clássico é a cegueira psicossomática (abordada de maneira genial em Dirigindo no Escuro [2001], de Woody Allen). Seu olho funciona, mas você não enxerga nada, porque há um bloqueio inconsciente; um caso particular e não raro de histeria.

AMY JUDD (óleo sobre tela)
Mas aqui não se trata de transtornos psíquicos – digo que somos realmente cegos, ainda que sem traumas, e sem quaisquer problemas de visão. Há muitos anos dou aulas de desenho e hoje percebo com clareza que minha função não é ensinar a educandos técnicas de desenho: é fazê-los abrir os olhos.
Vivemos em sociedade, e nossa relação espontânea com o meio social chama-se ideologia. É esse o sentido da ideologia: ela não é uma visão imposta de cima para baixo, nem uma mentira articulada que nos contam; é uma ficção de que tomamos parte voluntariamente. Há a ficção do “sistema”, para usar a metáfora do Matrix; e há outra, enunciada na psicanálise de Jaques Lacan, muito mais profunda, ontológica, e a qual a primeira é subsumida: a ficção originária dos nossos desejos. A “realidade” que vemos é uma espécie de anamorfose, uma distorção criada pelo desejo. E não há maneira de retificá-la. Assim como na ideologia do sistema capitalista – na qual, se acontecer de atravessarmos a camada ideológica da superestrutura, não encontramos nada além de um vazio; com a anamorfose dos desejos acontece o mesmo – sem aquelas distorção não há uma realidade “correta”. Sem a deformidade com que nossos desejos nos apresentam a realidade para nós, não há o “real” – há o nada.
Essa relação original é de Slavoj Zizek. Em termos mais simples, mencionemos o conto de E. Allan Poe analisado por Lacan em seus “Escritos”, chamado “A Carta Roubada”. Todos sabemos que há dois modos de se esconder uma coisa: recriando clones dela infinitamente, ou colocando-a no lugar mais óbvio possível. Lacan tira como interpretação do conto uma profunda lição sintetizada na fórmula: “uma carta sempre chega a seu destino” (LACAN. Escritos, p. 45). Mas podemos tirar também a conclusão de que sempre esperamos que cada coisa tenha um determinado lugar; esperamos que seja de alguma forma, esperamos que tenha algum modo, que fulano aja a partir de certo comportamento, gênero, ideias, conceitos, cor, crença, aparência, etc. Nesse sistema de projeções sistemáticas e ininterruptas acabamos por nunca nos deparar com a forma estética do mundo: estamos sempre diante de nossa própria expectativa. Por isso raramente nos colocamos efetivamente na posição de viver uma experiência e extrair dela um significado; porque todo significado é inédito. Toda grande descoberta só é grande e só é uma descoberta porque já estava presente desde sempre diante de nossos olhos: o que nos faltava eram olhos para vê-la, olhos que “descobrissem” a sua nudez, capazes de operar uma nova articulação.

COLIN CHILLAG (óleo sobre tela)
Filippo Brunelleschi inventou a Teoria da Relatividade no começo do século XV, bem antes de A. Einstein. Brunelleschi, personalidade de interesse a todo artista, sobretudo aos designers, uma vez que foi o criador da perspectiva, deixou um legado de extrema importância. Num de seus experimentos, colocou-se na entrada da Catedral Santa Maria dei Fiore na Piazza di San Giovanni, de onde podia ver (como ainda hoje) o edifício do Batistério de Florença (que fica defronte à Catedral). Olhando aquela vista, ele então pintou o Batistério sobre um tablado de madeira com uma perfeição ultrarrealista (para os padrões da época), e uma exatidão matemática no traçado da perspectiva. Nela, como se sabe, as linhas que são originalmente paralelas convergem em profundidade para um único ponto de fuga (como nos trilhos do trem, cujas laterais paralelas parecem se beijar no infinito – este ponto onde elas se encontram chama-se ponto de fuga). Justamente no ponto de fuga da cena que pintou, Brunelleschi fez um furo, abriu um buraco no tablado de madeira, do tamanho de um grão de feijão, de modo que se pudesse enxergar através dele. No lugar do céu, ao invés de representar nuvens, ele colou uma chapa de prata polida – assim, quando a pintura era vista ao ar livre, essa prata polida simulava o céu, funcionando como um espelho que refletia o céu verdadeiro.
A maneira correta de ver o experimento de Brunelleschi era segurar a pintura de revés (ou seja, olhar o verso dela) com a mão direita; e com a esquerda segurar um espelho voltado para o expectador. Nesta posição, o que o observador deveria fazer era olhar pelo buraco aberto na madeira – vendo assim a imagem da pintura refletida no espelho que tinha na mão direita (e não a pintura diretamente). Seguindo essas exatas coordenadas, de onde quer que o expectador visse a obra, a sensação era de que ele estava sob um dos portais de Santa Maria dei Fiore olhando para o Batistério de Florença.

CLIO NEWTON (carvão sobre papel)
Esse foi um dos maiores legados de Brunelleschi (além, é claro, do domo da catedral, o maior do mundo, e cujo segredo arquitetônico nunca foi decifrado completamente). Brunelleschi provou que a experiência só pode ser revelada por meio de coordenadas específicas – e estas só são obtidas através de algo muito mais específico ainda: um ponto de vista individual. Curvando um pouco a vara, podemos dizer que Brunelleschi inventou a subjetividade. Seu experimento, sem dúvida, foi um marco simbólico da “invenção de um olhar” capaz de descobrir, descortinar o mundo a partir da relatividade dos infinitos pontos de vista. Aí é que ele abre o caminho para Einstein, cinco séculos depois.
(Nosso salto histórico irresponsável é pura falta de método uma vez que não procuramos sentido nas casualidades, mas duvidamos profundamente dos sentidos das causalidades…)
Repost revisto do texto publicado originalmente
no site Filosofia do Design em 03 de Novembro de 2014