“Uma obra de arte de Paul Branca feita de papelão e jornais velhos cobertos por farelo de biscoito foi jogada fora da galeria de arte Sala Murat, no sul da Itália. Uma representante da empresa de limpeza Chiarissima declarou que a faxineira estava apenas “fazendo seu trabalho”. A obra que foi parar no lixo era avaliada em 10 mil euros, mais do que R$ 30 mil”.
Link aqui! (Notícia de Fevereiro de 2014)
Riscar a galeria ou cagar no chão hoje em dia pode ser arte. Óbvio. A questão não é essa – para além do blábláblá de que tudo é arte e todos são artistas, sabemos perfeitamente bem que a arte é um conjunto de procedimentos específicos estruturado pela técnica; todos acreditam que deva haver dispositivos específicos que configuram seu campo de atuação, e profissionais da área (artistas, críticos, curadores, etc.) são aqueles que determinam seu modo de operação. A arte contemporânea, de fato, cumpre todos estes quesitos. Por que, então, o público em geral rejeita?
Duas rupturas são desconhecidas do público geral: a ruptura de Duchamp na Europa no começo do século, e a ruptura do Minimalismo e da Arte Conceitual em Nova Iorque, na segunda metade do século passado. Se o público as conhecesse, pergunto, passaria a entender e a gostar de arte contemporânea?
Um comentário de um internauta relativo à notícia citada equivale à piada de Groucho Marx, e elucida parte da questão:
“Também, arte feita de papelão, biscoito, outra feita de lixo com garrafas, e outra com sacolas – acho que seria bem provável alguém confundir com lixo.”
A resposta é perfeita do ponto de vista lógico, e encerra a contradição implícita da piada: é óbvio que se trata de lixo e que a faxineira fez bem o seu trabalho; aquilo não é arte em hipótese nenhuma. Por que nos confundimos? Por que deixamos de ver que a confusão real aconteceu quando decidiram expor lixo com status de arte? Esta foi a contradição, afinal, que levou o acontecido às páginas dos jornais (não a confusão da faxineira); e encerra uma confusão primordial de nossa sociedade: tomamos umas coisas por outras. Que outras?
Lacan ensina que imaginação é a única via do desejo; uma vez que não podemos suportar a condição traumática do Real. As formas imaginárias que criamos, ao passo que aparentemente nos aproximam dele, nos afastam irremediavelmente do “verdadeiro” real, criando outro: recorremos à mediação espectral da fantasia, interagindo mais com elas do que com aquilo que cremos ser o próprio objeto do desejo. Do mesmo modo, a arte contemporânea traz implícito um “desejo de negação do desejo” que pode ser traduzido na impossibilidade da arte de se furtar à imagem; é a representação de uma luta contra a representação.
A obra que a faxineira jogou fora era uma instalação de Paul Branca – uma costumeira tentativa contemporânea de não criar ilusão, de fugir à realidade da ficção representacional. Esta tentativa está explícita “implicitamente”: papelão era papelão, farelo era farelo, etc. (Na arte tradicional, uma cadeira pintada não é cadeira, é tinta sobre tela; uma mulher não é mulher, é tinta sobre tela, etc). Poderiam ser quaisquer elementos: a obra de Branca faz parte de um projeto que articula várias produções numa única plataforma no interior de uma galeria; a composição geral é que é “a” obra, e não cada uma individualmente, como numa exposição tradicional… Nada novo. Paul Branca está dizendo que “expor o trabalho” é o próprio trabalho; assim a obra de arte se dá no diálogo geral resultante da interação entre as obras individuais.
Um projeto metalinguístico que se situa negativamente em relação aos referenciais simbólicos e quer criar seu próprio sistema autônomo de referências. Ou ainda:
Uma obra que fala de si mesma, mas não possui palavras para dizer-se. Essa contradição se evidencia em casos como o da faxineira, que não confundiu a obra com lixo, simplesmente a tomou pelo que ela é no campo de nossas referências cotidianas (onde jornal velho e farelo de bolacha não são outra coisa senão… lixo).
A galeria onde a obra estava exposta lamenta – não tanto a destruição de parte de uma peça, mas a proporção do fato midiático que a notícia tomou, e faz alusão ao livro do psicanalista Darien Leader “Stealing Mona Lisa”, que trata do fascínio que a perda ou o roubo de uma obra causa, aparentemente maior do que o interesse pela obra em si. É porque só depois de perdermos algo podemos apreender a dimensão do que foi perdido; então mensuramos o valor do objeto a partir do esforço que nos causa aceitar o trauma. O que a galeria talvez não se dê conta é que a arte contemporânea é a própria dimensão perdida da arte. Vendo em que se degeneraram as produções de hoje, avaliamos melhor o significado da arte antiga…
O indício desta constituição farsesca e contraditória no interior da arte contemporânea, e que todos, inclusive a faxineira, percebem (menos os artistas, aparentemente) é o mais previsível: você nunca verá um artista contemporâneo falando especificamente sobre a sua obra. Eles falam do “processo de trabalho”, das “referências”, de suas viagens ou sua casa na praia. Isso é geral em toda arte; a diferença é que o artista figurativo não “fala” porque já disse; já o artista contemporâneo, justo aquele de quem se deveria esperar uma “explicação” acerca do que quis dizer, este está impedido de fazê-lo, uma vez que não quer entrar no jogo convencionado das representações. A atitude anti-representacional da arte contemporânea é a fuga da ilusão, ou seja, a negação da existência de uma realidade na própria ficção, (o real presente sob a aparência da ilusão).
Aprendemos com Lacan: “O objeto de arte pode nos mostrar o que não queremos ver, forçando seu olhar sobre nós…”[1] Porém, desesperadamente tentando evidenciar a ausência de realidade na ficção, e buscando deflagrar sentidos a partir da própria realidade, sem mediações, ela normalmente fracassa. A arte contemporânea é um sintoma – um problema secundário que esconde o primário: a intenção de “estetizar o mundo”, sem poder dizê-lo. O melhor que consegue fazer é, então, falar, falar, falar…
[1] Para ler o seminário 11 de Lacan : os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Richard Feldstein, Bruce Fink, Maire Jaanus (orgs.); tradução [de] Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997 p. 200.
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