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Alyssa Monks |

Alyssa Monks | “Scream”, 2010 (óleo sobre tela)

Não se trata de se posicionar contra ou a favor desse processo extremamente dinâmico da “retomada” do “Realismo” na arte e das técnicas tradicionais. Trata-se de analisá-lo, criar formulações que expliquem o porquê dessa espécie de reviravolta, que antes parece um retrocesso a tudo o que supostamente fora conquistado pelo Modernismo e pela arte Pós-moderna. Quando a fotografia surgiu, a questão não era fazer-lhe oposição (embora houvesse), mas interpretar as condições daquilo que Diogo Portugal chama de o “regime de visualidade” que permitiu seu aparecimento no século XIX.

Isso posto, melhor proveito teríamos em decodificar os predicados do Hiper-realismo Contemporâneo (HRC). Aparentemente fomos mal interpretados; tentaremos, então aqui uma mediação… Quando uma escola surgia na História da Arte, pautava-se na crítica de sua antecessora. Assim o Renascimento se deu a expensas dos contrafortes e mosaicos medievais; o ponto de apoio do Neoclassicismo foi o Rococó; a justificativa deste último uma revolta contra o realismo litúrgico do Barroco, etc. Já o Modernismo se fez sobre a análise impiedosa do chamado Academicismo; enquanto a Arte Conceitual, por sua vez foi reação ao lastro de tradição que a pintura moderna ainda carregava… Nesse processo de negação, parte das qualidades do período é inevitavelmente perdida. Cremos que é essa parcela “positiva” que o novo realismo busca reconquistar.

Gottfried Helnwein |

Gottfried Helnwein | “The disasters of war”, 2007 (óleo e acrílica sobre tela)

É infinita a variedade de articulações expressivas que a técnica possibilita. A liberdade pregada pela arte contemporânea – do mesmo modo que aquela almejada pela Revolução Francesa – traduz-se como discurso: um termo ideológico que garante apenas um regime do “direito”. O que “de fato” realizou foi desfavorecer a capacidade técnica dos acadêmicos (futuros artistas), muitas vezes limitando aquelas articulações expressivas. Sob essa “liberdade” – veiculada como “conquista comum”, “patrimônio da coletividade” diante da qual todos poderiam enfim ser artistas – alguns são “mais iguais do que outros”. Visito museus regularmente, e o que vejo é Arte Conceitual. No cenário nacional e internacional, os mesmos poucos artistas. Além dela, mal disfarçadas variações sobre alguns temas e categorias – em parte “modernismos” requentados e reproduções de experimentações vanguardistas do último século, em parte essa coisa nunca definida de todo, incorporada sob a denominação de “poéticas visuais” e que muito se parece consigo mesma…

Dou aulas de desenho (especialmente Anatomia Artística e Figura Humana) há mais de uma década e estou envolvido na prática do desenho desde os 9 anos, quando entrei no primeiro estúdio de desenho, onde iniciei meu aprendizado. Desde então tenho ouvido a mesmíssima idêntica reclamação, que pode ser sintetizada: “eu quero desenhar, gostaria muito de aprender a técnica, me esforço, cheguei a entrar na Universidade, mas lá não há ensino da prática, sou desestimulado, já pensei até em desistir do curso”. Isso é liberdade artística? Afirmo e posso provar, que ouvi o mesmo testemunho ao visitar a UnB, a UFRJ, a UFPR, a UFRGS, a UDESC, a FAP, a EMBAP, a UnicemP e a Tuiuti, assim como em várias instituições em que trabalhei – onde tenho amigos formados ou em formação. Pelo testemunho de alunos ao longo dos anos, tenho percebido que essa reclamação é uma constante, e constantemente ignorada pela Academia.

Por sinal, ainda esta semana conversava com o grande aquarelista Joaquim Fonseca, o qual lastimava que em seu período de graduação no IA da UFRGS (onde fora aluno e orientando de Aldo Locatelli), havia cerca de 2.300 horas dedicadas ao desenho. Hoje, a mesma instituição contabiliza 1.680 horas (incluindo “Atelier de Criação” e “Pintura”) – das quais apenas 120h são obrigatórias (a última reforma curricular foi em 2007). Um testemunho igualmente dramático é o de Bandeira de Mello, que lamentava que, enquanto sua graduação na UFRJ contou com 900 horas de desenho, hoje oferece apenas 90[1]. Claro que há diferentes formas de aprender desenho, mas sabemos perfeitamente o que é efetivamente necessário para a instrução em desenho. Os objetivos expressos dessas graduações são formar o artista “em constante interlocução com a contemporaneidade” – nenhuma delas, porém têm aparentemente condições de responder a essa demanda pela técnica, da qual o HRC e a “retomada” da pintura ao longo do globo são meros sintomas.

Paul Cadden |

Paul Cadden | “Transference” (grafite sobre papel)

Onde está a liberdade, se apenas me dizem que posso fazer o que quiser, menos desenhar em uma graduação em Artes Visuais? Passei por isso e sei como é: durante os 5 anos de minha graduação sofri perseguições, vítima de um preconceito expresso e notório de professores de meu departamento (há testemunhas de muitas ocasiões). Diziam que desenhar era coisa “ultrapassada”. Lembro-me especialmente de uma docente que ao ver meus estudos de Michelangelo disse em meio a uma apresentação pública no auditório do Centro de Artes: “mas isso Michelangelo já fez, não interessa mais”. (Um ano depois fora lançada a tese A Arte Secreta de Michelangelo, que revelou ao mundo que desconhecíamos por completo a Capela Sistina…). Lembro-me ainda de outra professora pegar com a ponta dos dedos o livro Argumentações contra a Morte da Arte de Ferreira Gullar e, sacudindo o livro com desprezo, dizer “isso deveria ser queimado!”. Defensora da arte conceitual e das “poéticas contemporâneas”, essa Savonarola pós-moderna é uma curadora bastante renomada na região Sul…

Se há alguma liberdade artística, está fora das academias e das instituições (como sempre): está em atelieres privados e nos sketchbooks de uma infinidade de jovens que procuram obter a técnica e que, muitas vezes isolados, seguem desestimulados e sem orientação. Infelizmente tenho uma notícia triste a todos esses: não terão sucesso! Há quem use pejorativamente o termo “acadêmico” para criticar algum trabalho “realista”. Disse e repito: não existe academicismo no Brasil há quase um século, se é que um dia existiu. Quem chama trabalhos realistas de “acadêmicos” não faz a menor ideia do que seja o método acadêmico. Só para dar um indício: no método Bargue (quem sabe do que estamos falando conhece), aconselha-se desenhar “sempre com o mesmo sapato” – porque uma alteração na altura do observador mudará seu ponto de vista sobre o modelo (os desenhos levam várias semanas, às vezes meses para serem finalizados). O que vemos e chamamos de “realismo” na arte brasileira hoje não cumpre nenhum requisito do que foi verdadeiramente a produção acadêmica, são meras tentativas.

O grande crítico André Lhote afirmava que a pintura acabou em Jacques-Louis David, querendo dizer que o legado da cucina técnica da tradição pictórica (da qual David foi o último beneficiário) não passou adiante. David morreu em 1825. Não seria, então “matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem” criticar o realismo que forçosamente, contra a maré da academia, vem tentando se instituir no Brasil atualmente? Chutar cachorro morto é fácil, difícil é num país “periférico” (embora esse termo seja discutível) constituir um caldo de conhecimento técnico para ao menos dar chance às futuras gerações de realizarem seus objetivos quanto ao desenho, à pintura, à escultura realista, etc. Hoje, no país há pouquíssimos conhecedores realmente da profunda complexidade técnica do desenho.

Aleah Chapin |

Aleah Chapin | “Lucy and Laszlo 1”, 2014 (óleo sobre tela)

O chamado “conceito de desenho” pode ser explorado indefinidamente, mas é preciso admitir que o desenho é, sobretudo uma prática; se não lhe for dado suporte metodológico, jaz incompleto, frouxo. O calouro cuja predileção desde sempre foi o desenho, desenganado já nos primeiros dias da graduação, é educado nos “princípios sem princípio” do “conceito do desenho”… Ao final da graduação ele estará fazendo rabiscos na parede da galeria ou pequenas incisões num linóleo (como já vi inúmeras vezes em salões, museus e galerias), mas não conhece sequer perspectiva para desenhar um cubo; não conhece as coordenadas de valores tonais para desenhar um ovo. Muitos críticos não veem inconveniente nisso. Respeito; mas eu vejo. Francamente acho inadmissível.

A liberdade só se justifica se for um direito, e não um dever. Somente se conjuga se eu puder optar por não aprender. Se desejo desenhar, e é-me facultado o aprendizado técnico, então sou livre. Porém se me obrigam a me “desembaraçar” da técnica e produzir, ainda que seja qualquer coisa que eu deseje, com qualquer material – a liberdade acabou aí. Liberdade é garantir a concreção prática ao aluno de suas inclinações; o que, aliás custa pouco. Uma vez sabendo articular a linguagem visual, o artista visual pode construir discursos visuais, quaisquer que deseje – sejam mega-instalações com helicópteros, cabos enterrados a quilômetros da superfície, ilhas empacotadas no Atlântico[2], proposição de ações performáticas, objetos, vídeo… ou apenas desenhar, simplesmente, numa folha de papel, se ele assim quiser. Não tenham medo doutores! Isso não deixará o artista burro, nem inviabilizará seu pensamento crítico (talvez o fortaleça); não cortará seus vínculos com a realidade presente (talvez até os reforce); tampouco cairemos em exercícios de frisos gregos e reproduções de capiteis coríntios. Desenhar só aliena se a academia falhar em seu papel de, paralelamente ao ensino técnico, oferecer também ensino teórico.

Tenho pesquisado o HRC há 10 anos. Não fiz um estudo metódico, científico, do assunto; empreendi buscas de referências e teci algumas reflexões. Um caso exemplifica o prejuízo da falta de formulações sobre o tema: uma ex-aluna me pediu que orientasse sua especialização em Poéticas Visuais de uma certa universidade pública. Disse-lhe que infelizmente não poderia assinar a orientação porque não tenho eu mesmo nenhum título de pós-graduação, mas faria uma orientação de qualquer modo, extra-oficialmente. Ela veio diversas vezes a meu atelier, me falava suas ideias e conversávamos sobre o assunto que escolhera: o Hiper-realismo Contemporâneo. Só tardiamente e a muito custo ela encontrou um orientador na Universidade que aceitasse seu trabalho, mas por fim mais tarde acabou por desistir do título. O único professor que se dignou lhe passar referências deu-lhe alguns xerox de textos sobre o Fotorrealismo de 1970! O doutor em questão nem sequer sabia da existência de uma nova frente, completamente diferente do movimento de 70, que ocorre hoje em escala global.

Dino Valls |

Dino Valls | “VERA ICON”, 2007 (óleo sobre tela)

Se é liberdade o que alardeiam as Poéticas Visuais, que venha então o Hiper-realismo, os retornos ao passado, o desenho, o que for… O resgate ou continuação de mo(vi)mentos artísticos não nos faz piores, nem dependentes. Conheci e tive oportunidade de expor ao lado de obras realistas de arte militante, duas obras de Davide Boriani – este artista italiano, na época com 74 anos, que ainda vive e trabalha em Curitiba (na Vista Alegre), e nos disse ter sido um dos fundadores da “Arte Cinética e Programada”, movimento nada recente… Arte crítica e de qualidade não é nunca anacrônica.

Há quem pense que se trata de eurocentrismo e elitismo de nossa parte. Esse era precisamente o exato argumento dos modernistas de 22. Bem ou mal, como consequência da importada Semana de Arte Moderna, após algumas indas e vindas, hoje perdemos a capacidade de desenhar – e a arte conceitual, originária e inteiramente importada da Europa e dos EUA, domina os museus e a academia brasileira. O ensino do desenho no Brasil é minoritário nas instituições (para o qual, no entanto, há enorme demanda multiclassista de aprendizado técnico).

Como é que defender a inclusão de um ensino que nos coloque no mesmo nível da arte mundial pode ser elitista? Jamais postulamos retirar matérias do currículo (como fizeram com os créditos das disciplinas práticas), do contrário, reivindicamos a inclusão de um conhecimento desprezado nacionalmente na academia. Isso é acaso dogmático? Isso obrigará alguém a torna-se um pintor realista? Justamente porque defendemos a diversidade artística, procuramos “informar” acerca do movimento Hiper-realista.

Este não é minha categoria pessoal favorita, de modo algum – prefiro o “realismo pictórico”, por assim dizer. No entanto, vejo as raríssimas manifestações do HRC no Brasil com bons olhos e boa vontade, pois vislumbro nelas a possibilidade de talvez ter alguma chance de mediação artística com o público que não entende o instrumental complicadíssimo, (esse sim) elitista e acadêmico, da arte conceitual e suas derivações. O HRC hoje se manifesta no Zimbabwe, Bolívia, Argentina, México, Rússia, China, Coréia, Irã… ou seja, não é um movimento eurocêntrico.

Não se trata de “ser contra” as formas e categorias de manifestações artísticas contemporâneas – trata-se de combater a hegemonia para conquista de uma real diversidade. Tampouco se trata de defender o realismo (esse é apenas um gosto pessoal cujo direito de ter reivindicamos); trata-se de defender o ensino do desenho.

A técnica pode ser ideológica, mas é o exercício dela pelo sujeito que molda seu instrumental a seus próprios interesses – uma comunidade artística pode se apropriar de uma expressão específica e lhe conferir novos significados, inclusive teor nacional. A polarização “metrópole x periferia” é bastante complexa no terreno artístico. Foram boas as experiências importadas da arte contemporânea e também as modernistas: qualificaram nossa estética. Mas um dia têm de dar espaço a outras manifestações.

Vincent Xeus |

Vincent Xeus | “The Portrait – Concept” (óleo sobre tela)

É fácil de entender se transplantarmos a discussão para outra área artística: a música, por exemplo. Poderiam Smetak, Arrigo Barnabé, Egberto Gismonti, Eumir Deodato e Hermeto Pascoal terem realizado suas experimentações nada acadêmicas sem saber solfejar? Sem aprender a tocar muito bem e devidamente um instrumento? Sem aprender as rigorosas técnicas de composição e regência?

A fim de que não se pense que o nosso seja um discurso isolado ou ausente da Academia (embora, minoritário), republicamos aqui o Manifesto do Conceito ao Desenho, a que deram retorno favorável críticos e artistas como Affonso Romano, Avelina Lésper, Maria Luiza Leão, Carlos Perktold, e assinado por meia centena de artistas (incluindo doutores). E para quem pensa que realismo é pintar pinheiros, casarios de Ouro Preto e copos de leite, vide essa rápida seleção de referências; são obras que mostram o que se pode fazer com o desenho. Infelizmente, nenhuma delas é brasileira…

http://www.dinovalls.com/

http://www.helnwein.com/works/mixed_media_on_canvas/

http://www.timofeev-art.de/

https://www.behance.net/gallery/24170041/Sandorfi-Istvan-Catalogue

http://vincentxeus.com/

http://alyssamonks.com/

http://www.paulcadden.com/

http://www.leepricestudio.com/

http://www.colin-chillag.com/

https://www.instagram.com/annemarie.busschers/

http://www.nunziopaci.it/2014/03/nunzio-paci-opere-su-carta-9.html?spref=fb

https://www.tumblr.com/tagged/douglas-mcdougall

http://www.vaniacomoretti.com/

http://www.golucho.com/

http://lagallinaciega.com/

https://www.pinterest.com/noahrobinsonsta/illustration-to-inspire/

https://www.pinterest.com/mshealey/portraits/

https://www.pinterest.com/ghaliab/portrait/

https://www.pinterest.com/lindacarrie/art-drawings/

https://www.pinterest.com/svjatets/a/

[1] Hoje a média da carga horária entre as principais Universidades do país é de 60 horas.

[2] Em relação a esta referência, vale dizer que o artista búlgaro Christo (que assinava as obras com sua companheira Jeanne-Claude), o qual respeito muito e jamais aceitou encomendas ou dependeu de verba governamental, de museus ou patrocinadores, é um excelente desenhista. Christo, aliás, financia suas obras através da venda dos desenhos projetivos de suas imensas instalações.

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2 pensamentos em “A ditadura da liberdade

  1. O que eu tenho a falar sobre desenho, através do que vejo, leio e sinto e pela minha escassa ( queria ter nascido desenhando) experiência, é que em primeiro lugar a prática do desenho nos ensina a observar, lidar com a paciência, entender a perspectiva e a estruturar e construir….e isso levamos pra vida, penso que influencia o nosso cotidiano e nosso olhar no mundo. Desenho é a base de tudo, considerando que qualquer idéia para sair do imaginário se utiliza da mão desenhando, rabiscando para que a coisa se concretize, esse fazer está presente na vida de inúmeros artistas que sabiamente aprendem a desenhar para auxilia-los na estruturação das idéias. Penso tb que o desenho deveria estar mais valorizado nas Escolas de Arte e praticados com afinco. Desenho é diálogo, narrativa, história e estórias e é inimaginável a humanidade sem este suporte.
    Professor Gustavot obrigada pelo texto e por lutar por algo que muitos acreditam!! Liana

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    • Agradeço o comentário Liana… E concordamos contigo, em todos os pontos! Teu trabalho, que aprofunda o desenho no espaço trdimensional e avança até outras categorias, é prova de que o desenho qualifica todo tipo de produção plástica! Um grande abraço, G

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