O maior favor, ou desfavor, que a internet prestou à arte foi a total dessacralização da imagem. Fez com que o xeque-mate de Duchamp parecesse um passatempo, uma piada erudita. A “aura”, tantas vezes questionada desde o expressionismo foi à pique no mundo digital. Vulgarizada ao extremo, a imagem demorará em readquirir sua potência e o que mantêm a força imagética: a possibilidade de construção simbólica. Nunca a visibilidade, intervenção e a apropriação de imagens fora tão acessível; a técnica de composição dos elementos da linguagem visual, no entanto, continua restrita. Como resultado, vemos uma infinidade de imagens que não sabemos interpretar.
É facilmente concebível que, no final do século XV, fosse vedada a Michelangelo a utilização de papel, dado o alto custo desse artigo quando de seu aprendizado no atelier de D. Ghirlandaio. Apenas com algum tempo de prática um discípulo poderia ter acesso à efetiva produção. Desde o Renascimento tardio até metade do século XIX, quando o papel de celulose foi popularizado, as imagens vistas pelo cidadão comum restringiam-se às pinturas sacras nas igrejas e conventos, aos afrescos e esculturas públicas, e a algumas folhas fugidias (como eram então chamadas as xilogravuras que circulavam nas cidades progressistas). Raras, portanto, eram as ocasiões em que ele “via imagens”.
As classes dominantes, eruditas, poderiam ter produções em pintura e desenho em seus palácios e residências; ainda assim, possuir uma pintura na parede era um luxo restrito. Para se apreciar o acervo Medici, por exemplo, fazia-se necessário a intervenção de um membro direto da família concedendo a permissão de adentrar o gabinete pessoal de Lorenzo, ou sua coleção de clássicos no Jardim de São Marcos.
Mesmo no passado, era difícil interpretar as produções dos artistas. A diferença entre Michelangelo – que resolveu todos os problemas técnico-formais da cinética (movimentos do corpo), e Bernini – que criou outra modalidade de movimento, suspendendo seu peso; era pouco compreensível. Hoje, em que pese a enorme fortuna crítica de ambos os escultores, suas produções continuam ininteligíveis para o cidadão comum. Acredito que parte disso não se deve, como antigamente, à falta de acesso à imagem: mas justamente ao acesso irrestrito a ela.
“Dar acesso” não é essencialmente positivo, quando o acesso ilimitado é um disfarce da incapacidade de transmissão dos mecanismos de seleção da imagem – suas ferramentas técnicas de produção e crítica. A imagem é algo em si mesmo invisível; esta é a sua característica definidora. Pois a imagem é um código. São elementos da linguagem visual (ponto, linha, plano, cor, etc.) organizados sob determinados procedimentos e codificados em uma técnica. Por isso a produção de imagens encontra uma dificuldade intrínseca: é preciso conhecer as ferramentas de seu processo de metabolização.
Em tempos de selfies e posts instantaneamente descartáveis, o acúmulo de imagens disponível é quase infinito; mas o número de “boas imagens”, ínfimo. Assim como a escrita parece ter se perdido no universo digital, a imagem se fraturou, alijada de seu cerne: sua função de simbolização. É forçoso concluir que, se os artistas contemporâneos não tivessem se esquecido de como desenhar, pintar e construir imagens, a utilidade seria bem pouca: não saberíamos lê-las…