Antes de saber que a data se devia ao nascimento de Leonardo da Vinci, esbarrei casualmente no São Benedito José Labre – celebrado também no dia de hoje. Conhecido como “Vagabundo e Mendigo de Deus”, ou ainda “O Cigano de Cristo”, o santo depauperado perambulou pelo mundo até morrer em consequência de maus tratos e falta de higiene. É o patrono dos deslocados e das pessoas desadaptadas: bem poderia ser esta a explicação do dia 15 de Abril ser o “Dia Internacional do Desenhista”!
Sem dúvida o desenho significa deslocamento e falta de adaptação. Significa inadequação à ordem verbal e lógica que nos embaraça, e está no fundo dos discursos e das práticas, dos projetos e das tragédias… José Saramago descreve uma sensação que, não sendo exclusiva do desenhista, é bastante familiar dos que teimam em desenhar:
Não me peçam razões por que se entenda | A força de maré que me enche o peito, | Este estar mal no mundo e nesta lei: | Não fiz a lei e o mundo não aceito. (In “Poemas Possíveis”, 1966)
Leonardo da Vinci fora o primeiro artista a refletir e formular “teoricamente” sobre o ato de desenhar. Inaugura, por assim dizer, o desenho como a autoconsciência do artista, uma forma de inter-relação, consigo mesmo e com o mundo. A originalidade de sua obra está, aliás, na execução do desenho enquanto expressão cujo significado jaz na própria forma operacional; um desenho autônomo. Sua operação desenhística, incluindo a significação “projetiva” (de desígnio), operava concomitante a uma consciência da forma: relativiza a ambiguidade do devir, ao infundir beleza estética na forma sumária de seus desenhos. Não que outros não o tenham feito; mas da Vinci, diferentemente, escreve sobre.
Em um desenho projetivo, o que importa não é a operação de projetar, mas a finalidade: a própria estética que porventura se incorpore ao pensamento do designer ou do artista é instrumentalizada pelo valor de uso do objeto (mesmo os procedimentos metodológicos do desenho estão subordinados à mesma finalidade). No limite, não é certo dizer que, em Design, forma e função se realizam autonomamente – ou seja, não são de todo pertinentes as famosas expressões de “forma segue função”, etc. Neste último caso, a estética anunciada está subsumida a uma função: seja a de agregar valor, rearticular os usos, etc. Desaparece enquanto estética.
Com sua típica associação livre de ideias, da Vinci nos mostra em um mesmo desenho o projeto de um instrumento de guerra, um estudo de botânica com o esboço de uma flor; tudo isso junto aos versos de um poema… Ou cabeças de cavalos junto a estudos do sistema solar, etc. Mais do que uma habilidade, essa sensibilidade profundamente moderna, (mas ancorada na concepção holística medieval), demonstra uma atitude que emula a seu modo também uma era “pós-moderna”. Se deixou rascunhos e intenções de tratados acerca de inúmeros temas, (figurando a necessidade da especialização e divisão do conhecimento) a dificuldade que sentimos na apreensão da totalidade de sua obra denota nela uma atitude frente ao conhecimento que raras vezes se repetiria até o século XX, aparecendo e, sua forma plena apenas no XXI.
Pode ser visto como uma nova síntese da fórmula enganosa “forma&função”, superada na equação: estética&ética, assumindo princípios clássicos. A própria execução de um desenho que considera em si mesmo a forma, ao mesmo tempo em que sua realização futura – uma aporia imagética – é uma radicalização entre estética e ética, ao operar a relativização recíproca dos dois elementos. Quer dizer, o objetivo “a aparecer” (o âmbito projetual, ético de atuação) é posto em cheque pela forma estética; ao passo que essa se relativiza mediante a necessidade de expressar apenas dispositivos de operação do porvir. Na obra de da Vinci, como ambos se mantém, a radicalização destes opostos se dá porque nenhum dos lados se anula a partir do outro: ambos “aparecem” a partir de seu oposto. Da Vinci ressignifica a ação do desenho, inscrevendo-a na elaboração conjunta e contínua do mundo, como estratégia existencial na dinâmica dialética do viver.
Intuindo que havia algo “entre ele e os objetos” (séculos depois os impressionistas representariam a luz; e em 1927 W. Heisenberg explicaria essa distância como Princípio da Incerteza), embora sem poder explicar cientificamente (ele ainda estava criando as alicerces do que seria ciência), da Vinci sabia que algo “borrava”, esfumava os contornos das coisas, quando vistas. Ele compreendeu a existência da “atmosfera”. Era necessário um modo de representar isso, tanto na pintura, quanto no desenho. Criou o sfumato – nome ainda dado a esse procedimento no qual a ação de desenhar esfuma as linhas e os traços do lápis; e aprofundou a técnica de velaturas na pintura, que apaga a pincelada, recriando as coordenadas exatas do volume.
Replicando o efeito atmosférico na representação artística, emulava um fenômeno natural em sua metodologia de trabalho: esta é uma forma de cooperar na “Criação”, trabalhar conjuntamente da conformação figural do mundo. O grande projeto de da Vinci era, sem sentido figurado, justamente a realização de um ser humano. Embora pareça exagerado, tenho para mim que seja isso, exatamente. Seu desejo expresso de reunir e organizar todo o conhecimento do mundo até então adquirido (ambição na época ainda possível); suas profundas investigações, desde o nascimento até à morte do indivíduo; e por fim suas maquetes de “robôs” com forma humana – engenhos humanoides articulados nos quais trabalhou a vida inteira, nos dá a conotação de seu real desejo: reconstruir, para além da representação plástica, um ser humano real.
Essa tentativa, permanentemente frustrada, de recriar “outro homem”, e a constituição de amplos fundamentos para um “novo mundo” (botânica, mecânica, anatomia, filosofia, arte, matemática, etc.) não pode ser melhor interpretada senão como uma completa inadequação a este mundo. E como São Benedito José Labre demonstrou em sua trajetória, o destino daqueles que não se adaptam no mundo é tornarem-se santos ou heróis, pois algo tem de ser separados “neles” do restante da humanidade: justamente aquilo que não reconhecemos em nós, e o qual tachamos de “sobre-humano”; aquele traço fundamentalmente humano que não admitimos ter e por isso designamos de gênio…
Isso já sabemos. E a solução?
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