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George Bush, autorretrato

Ontem (04|04), a mídia noticiou a primeira exposição de pinturas do ex-presidente dos EUA, George Bush, no Museu Presidencial George W. Bush, Texas. Retratos de Vladimir Putin (presidente da Rússia), Silvio Berlusconi (ex-primeiro ministro da Itália), Tony Blair (ex-ministro do Reino Unido), Nouri al-Maliki (primeiro-ministro do Iraque), Hamid Karzai (presidente do Afeganistão), George W. Bush pai, Manmohan Singh (primeiro-ministro da Índia), Felipe Calderón (presidente do México), Dalai Lama, entre outros, além de um auto-retrato – totalizam 24 pinturas de dirigentes – os quais, segundo Bush, seriam seus amigos. Após deixar a presidência, Bush adotou a pintura como hobby. A mídia já havia noticiado uma série de pinturas de cães e gatos, de sua autoria.

POESIA SEM IRONIA

Não sinto que seja o caso de aprofundar interpretações que de início se revelam, do tipo – como alguém de tantos recursos pode ser tão obtuso em assuntos estéticos e realizar arte tão medíocre? ou – até onde chega a falsidade de amigos e familiares, deixando alguém na “ilusão artística” de publicar mundialmente um trabalho que gera mais vergonha alheia que estesia; ou ainda, como a mídia omite opiniões, por escrúpulos de imparcialidade, e transforma com isso um trabalho risível em algo mais ridículo ainda; etc.

Nouri al-Maliki, primeiro-ministro do Iraque

Nouri al-Maliki, primeiro-ministro do Iraque

Também não se trata de buscar uma eventual profundidade na obra com análises críticas, como fizeram alguns sites estadunidenses; tampouco inferir qualquer significado a esta contradição flagrante: uma das pessoas mais influentes e perigosas do planeta pinta animais domésticos e retratos de amigos (Hitler e Churchill também o faziam, cada um a seu modo). Ainda que bastante suspeita, não acho que a “atividade artística” de Bush deve ser questionada; pelo menos não como questionaríamos um diletante privilegiado; tampouco me interessa por que Bush pinta telas. Tentaremos refletir procurando o que está “na superfície”, como nos ensina Lacan e Z. Zizek.

Vladimir Putin, presidente da Rússia

Vladimir Putin, presidente da Rússia

A começar pela própria assinatura pintada na tela: “43”. Seria equivocado, neste caso, ler a pintura como negação da atividade profissional, como compensação da pressão e do estresse do trabalho, etc. Em sua assinatura (Bush foi o 43° presidente dos EUA) se reinscreve o presidente – não é revelado, portanto um “outro Bush”, sensível e aquém das intrigas políticas, mas uma clara afirmação de que é o mesmo homem intrigante, preso às esferas do poder, que (também) exerce a pintura. Podemos, sem precisar sair da superfície e acusar intenções inconscientes, dizer que literalmente o artista é substituído pelo homem de Estado, nos termos sígnicos da assinatura – que normalmente qualifica um estatuto de importância, maior ao artista que à obra, funcionando costumeiramente como metonímia (comprei um Velázquez, etc.). A assinatura aqui reivindica não a autoria de uma obra, mas um mais amplo exercício da atuação política, um sinal de variação e multiplicidade do ofício parlamentar.

Silvio Berlusconi, ex-primeiro ministro da Itália

Silvio Berlusconi, ex-primeiro ministro da Itália

Em que pese a missérima qualidade da obra, o que interessa é mais o fato evidente, sem necessidade de articulação ideológica, de Bush não ocultar nada – como estadista, não se envergonha da nova atividade a que tem se dedicado; afinal ambas as profissões (artista e político) são legítimas dentro da instituição democrática capitalista – não há de que se envergonhar. No entanto, é algo estranho, algo de efetivamente inacreditável. Uma vaga perigosa percorre um estreito campo de ressonâncias, e nos diz que neste caso, algum elemento é indecente… noutras palavras, a relação concomitante e ambígua entre o político e o artista é de alguma forma obscena, no sentido que lhe atribui Baudrillard – quando um fenômeno perde sua dimensão metafórica (no caso, a real expressão artística) e se assume imediatamente real, sem mediações que nos informem um contexto que a justifique, que represente suas coordenadas simbólicas (no caso, onde o artista no chefe de Estado). O cinismo mesmo da admissão auto-proclamatória de ambas as atividades é o elemento perturbador. Faz lembrar um poema de Drummond:

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Mas a ironia, arma poderosa da poética drummondiana, não pode decifrar um equívoco que por sua vez está incorporado, que é  “autoconsciente” na atuação de Bush. Não é a tentativa recalcada de expressão que todos nós realizamos, cantando no banheiro, por exemplo, ainda que nos saibamos despossuídos de talento; não parece haver nenhuma “vergonha” no vernissage, nem mesmo a de mostrar uma obra tão miserável em quesitos técnicos. Pelas declarações à imprensa, e pela forma com que foi apresentada ao público, esta exposição não abre espaço para uma crítica articulada que conduza ao ridículo – qualquer crítica deve partir do pressuposto de que se trata da obra de um artista; ou de que ele não é artista, mas um pintor de final de semana: boa ou ruim, independente da opinião, trata-se antes de julgar “a obra de um artista que expõe o seu trabalho”. Bush está dizendo “– É, faço essas coisinhas, pinto de vez em quando, mas não é nada sério, acho que meus amigos vão gostar…” Pode-se gostar ou não- o que não podemos é achar absurdo. Aparentemente não haveria nada de errado, caso o pintor se fosse um profissional liberal, ou um aposentado, que escolhei se dedicar à pintura como lazer nos fins de semana. Não é o caso: trata-se do homem público que deflagrou uma guerra no Oriente Médio; o parlamentar que negou auxílio a vítimas pauperizadas do Katrina, etc.

Ehud Olmert, ex-primeiro ministro de Israel

Ehud Olmert, ex-primeiro ministro de Israel

O que o bom senso espera de um estadista é certa seriedade que dificilmente inclui veleidades artísticas, atividade sempre ligada à fanfarronice, à boemia e ao arrivismo ao poder. A obscenidade está em apresentar o vernissage, os releases, os segundos cadernos sem o questionamento esperado; em frustrar as expectativas de crítica e normalizar a situação como se não houvesse nada com que se preocupar. Essa calculada displicência se evidencia no cuidado em não ser tomada qualquer precaução que faça desaparecer as contradições: tudo o que ali é expresso incorpora todo e qualquer erro de cálculo, inclusive o celebra como um festivo rasgo de liberdade democrática. Ninguém quer ocultar o fato de que Bush é um sociopata: neste caso, se justapõe, numa só pessoa- um facínora anormal – o exercício da poiesis, sem que ninguém veja nisso algo de estranho. Mas onde não há estranheza em pinturas dos líderes mexicano, colombiano, russo, iraquiano, israelense, e afegão – feitas pelo ex-presidente dos Estados Unidos?

Não é que se tente escamotear diferenças políticas sob o fazer humanizante e universal da arte; nem devemos procurar algo como “elos humanos” entre homens de Estado; aqui é novamente a superfície que revela: um mapa de afinidades políticas “por sobre” os laços de amizade. Foi exatamente essa a intenção mais imediata e espontânea de Bush, sem nenhuma reserva. Não procura esconder seus laços com Nouri al-Maliki, primeiro ministro do Iraque; e essa “não tentativa” de esconder publicamente o que obviamente deveria se ocultar da esfera política (em especial a arte, que só se realiza na esfera pública), é o que há de profundamente desconcertante – certamente não a Guerra no Iraque, nem o atentado desta quarta feira (02|03) em que um cabo do exército ianque executou no Texas 3 soldados que serviram na guerra do Iraque ferindo mais outros 16 militares antes de se suicidar. É obsceno especialmente por se apresentar como uma determinação positiva ao invés de uma desistência; não é um ato voluntário de prestidigitação, mas a realização de uma não-ação.

Tony Blair, ex-ministro do Reino Unido

Tony Blair, ex-ministro do Reino Unido

Diferentemente, no caso do cabo, o Secretário de Defesa norte americano Chuck Hagel reconheceu em declarações haver algo fora de controle: Obviamente temos um vácuo. Todas as vezes que perdemos um indivíduo, algo deu errado”. Neste caso, ele culpa uma entidade abstrata, um algo que “foge ao controle” (supondo que dentro dos limites deste controle, que é até onde vai sua jurisdição, tudo estaria em ordem, correto e normal…), admitindo por isso mesmo uma culpa, e consequentemente a existência de um “erro”. Por mais injustificável que pareça, neste caso, no entanto não menos revoltante, há apenas omissão por parte dos envolvidos, que incorrem num complexo bastante conhecido e estudado por Freud.

Quanto à exposição de Bush, a normalidade aparente que se apresenta na construção simbólica em torno do evento, sem sequer tentar neutralizar as contradições evidentes, faz com que não haja razão para se levantar objeções – afinal, que tem de mais em uma pessoa pintar retratos de amigos? A exposição nos parece um caso icônico do “cinismo” que inviabiliza a crítica tradicional – tema atualmente tratado por pensadores como  Zlavoj Zizek, Vladmir Safatle e Silvia Viana.

Quando o cinismo é a regra da conduta ideológica, pode-se, enfim, noticiar qualquer coisa por não existir sequer suspeição de “mentira” ideológica, uma vez que o poder assume a inexistência de “verdade” (crítica central dos pensadores pós-estruturalistas); a própria ideologia apresenta-se sem máscaras, apresenta-se simplesmente como… ideologia! Esconde-se não mais com um disfarce, mas com a nudez.

Hamid Karzai, presidente do Afeganistão

Hamid Karzai, presidente do Afeganistão

Podemos ver, a exemplo, a seguinte notícia, divulgada ontem (04|03) na midia: “EUA: Operário é retirado de prédio em chamas”. Mas… a classe operária não havia desaparecido junto com a burguesia depois de 1989? Ou antes, desde a publicação de A Condição Humana, de Hanna Arendt? O terror se estabelece quando o poder absorve em si mesmo a crítica e apresenta não mais uma notícia distorcida por interesses particulares – em lugar das ideologias que lhe servem de pressupostos, noticia a “própria autocrítica”.

A NOTÍCIA SEM FATOS

A primeira notícia que li sobre a exposição de Bush, compartilhada em uma rede social, não me pareceu segura; a segunda também não; até que vi fotos da sala expositiva onde o próprio Bush comenta seus trabalhos em entrevista à filha, correspondente do jornal TODAY. A abundância de fontes on line dissipou então minha incredulidade… Por que relutei em acreditar que uma pessoa pode pintar e expor seus trabalhos? Em princípio por certa desconfiança intelectual acerca dos meios eletrônicos; suspeito que eles possuam qualquer coisa de superficial, fragmentário, incompleto. Mas talvez, no fundo, o problemático na internet seja a condição que sofre de apenas poder anunciar um “mundo” onde já não existe mais erudição, onde o real é desinteressante devido a sua vertiginosa veiculação, onde o mundo é demasiadamente exposto como “real”; quer dizer, a desconfiança a respeito de uma notícia em particular, substitutiva (ou entificada), ocupa o lugar de uma descrença com relação à “própria mídia”.

Felipe Calderón, presidente do México

Felipe Calderón, presidente do México

Essa transferência de recusas é aqui correlata a outra desconfiança: Bush não é uma pessoa, Bush é um ex-chefe de Estado. Lembrei-me de já ter pesquisado fontes alternativas a respeito de outras declarações de Bush, pelo mesmo motivo: não creio na internet, e demoro a acreditar que o dirigente de um país tome medidas tão absurdas. O “fundo da superfície” é que acredito que presidentes de nações devem ser homens razoáveis, ponderados, profundamente sensíveis e acima de qualquer suspeita. Mas por que acredito nisso? Há exemplos de sobejo que o desmentem. Eu sei; no entanto, recuso admitir que dirigentes sejam sociopatas anormais, pois essa descrença evita que eu desacredite o Estado inteiro. Essa dúvida é legítima, e justifica eu ter duvidado a princípio do fato “normal” apresentado como “normal”, de que Bush, após deixar o governo (onde cometeu uma série de atrocidades de impacto global) passou a se dedicar à pintura de cachorros de estimação como hobby.

O PRESIDENTE SE MASTURBA DIANTE DO ESPELHO

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Outras duas pinturas têm circulado juntamente com a notícia da exposição; realizadas há alguns anos, elas foram publicadas quando um hacker invadiu o computador da irmã do ex-presidente. Lá ele descobriu e compartilhou dois autorretratos de Bush representado no banheiro, onde se “desconfia claramente”, em ação masturbatória. São pinturas impressionantes (não aludimos a qualidades técnicas ou artísticas). O que impressiona não é o fato do então presidente dos Estados Unidos se masturbar em seu banheiro, mas, como apontou o blogger Greg Allen (que, no entanto leva muito a sério o fundo para conseguir enxergar a superfície): “O incrível não é apenas o fato de que literalmente mostram a própria perspectiva de Bush – mas que Bush está usando o processo da pintura para mostrar sua própria perspectiva”[1]. O artigo de Allen segue numa análise formal e psicológica, mas é nesta altura que foca exatamente o que se deve ter em conta. Expandindo sua análise às demais pinturas, a questão é: mais do que representar um campo de afinidades escandalosas com personalidades políticas corruptas, Bush está usando de um meio tradicionalmente “ideológico” para fazer isso. Não bastam as fotografias onde figura juntamente com aquelas personalidades (inclusive várias fotos são expostas ao lado das pinturas, incorporadas também à exposição). Fora necessário uma estratégia a mais, uma ferramenta subjetiva para compensar a objetividade por demais árida das fotografias no Conselho da ONU e imagens jornalísticas – uma expressão mais subjetiva, imprecisa, emocional.

Novamente não é o significado das imagens que deve surpreender, mas a exposição em si, a adoção de um meio artístico que não “representa”, e sim “apresenta” novamente o que já está codificado. Claro que não esperamos de Bush a atitude de um artista legítimo, que deve despojar seu modelo da significação mundana a fim de captar “expressão de alma” do modelo, como fez, por exemplo, Lucien Freud com a rainha Elizabeth (representando-a numa tela minúscula, com tosco acabamento, onde a coroa aparece pela metade). Lucien Freud “ressignificou” o símbolo da realeza, desmistificando a aura da majestade. Bush replica imagens já codificadas, sem interferir no seu caráter simbólico; expõe-nas tão somente como “retratos de amigos”, pessoas de quem gosta e pelas quais tem afeição. Esse ato impudico de expor sem mediações e sem tergiversar sobre o próprio ato de expor mostra, muito mais que pinturas, a debilidade de um homem público que reconhece a própria debilidade, e não se vergonha de suas relações. Não expondo a contradição presente nessas relações ambíguas como algo “fora da ordem”, algo suspeito, revela-a da seguinte maneira: essas contradições são normais, no-las aceitamos, assim como os caprichos naturais ao homem com a faixa presidencial; não se trata de uma perda de vergonha, é normal expressar-se, faz bem… Não é vergonhoso o presidente pintar a si mesmo se masturbando em frente ao espelho do banheiro; é normal – o melhor mesmo a fazer é tornar público, montar os quadros no museu presidencial e divulgar nos cadernos de cultura; se houver críticas, serão tolas e preconceituosas.

Um detalhe encerra nossa pequena análise: num dos autorretratos, Bush aparece de costas para o espectador enquanto aparentemente se masturba diante de um espelho de barbear que não está exatamente em sua frente – no entanto, vemos seu rosto por inteiro, que olha para nós… Não será esta a perfeita metáfora do cinismo?

George Bush, dois autorretratos no banheiro

George Bush, dois autorretratos no banheiro

[1]http://gawker.com/5982836/george-w-bush-is-an-outsider-artist-standing-apart-from-history-naked/all

 

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