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Este programa do canal espanhol Telecinco, embora transmitido há 6 anos, cabe perfeitamente no contexto atual, e expõe a arte contemporânea em toda sua nudez. É o mesmo que dizer: ‘- Vejam, o rei está morto!’

A conclusão não é que a arte é “subjetiva”. Pelo contrário: os determinantes do gosto são de ordem complexa, mas a definição do que é “arte” não perpassa questões pessoais de “gosto”. Eleger o “juízo pessoal” como critério de valor artístico é tão ideológico como eleger uma banca de doutores como único júri valorativo. A arte é determinada por critérios “objetivos”: a saber – o lugar em que está sendo exposta, a chancela de um corpo de críticos, as afiliações e associações a que está ligada, o alcance e a legitimidade da mídia, o fascínio exercido pelo poder social e especulativo a ela vinculado. Numa palavra: a Instituição. Em um nívelmais profundo, é determinada pela idiossincrasia, que compreende o famoso “espírito de época”, e cuja mediação é realizada pelo kunstwollen...

Gabriel_Cornelius_von_Max,_1840-1915,_Monkeys_as_Judges_of_Art,_1889

“Macacos como críticos de arte” (1889).
Gabriel Cornelius von Max (1840 | 1915)

A arte é um campo em disputa. Não há verdade que aí possa ser instituída, uma vez que não deve haver ditames sobre manifestações culturais (dado que sua espontaneidade é justo seu valor de legitimação). Ou seja, as manifestações estéticas de um indivíduo são expressões de seu sentir e de suas percepções; mas um embate acontece quando se confere um estatuto para a manifestação estética (e passamos a denominá-la “arte”), e quando é incluída em um campo regulado por determinados agentes.

Quando se fala em “arte”, não podem ser ignoradas as formas concretas de sua aparição. Para que haja a simples exposição de uma obra, é necessário muito mais do que obra X público. Estão envolvidas empresas de assessoria de imprensa, editores, produtores, diretores culturais, conselho curadores, críticos e experts (a chamada opinião especializada), agentes museológicos, o corpo administrativo da Instituição – desde a equipe de montagem, mediadores e cargos dirigentes comissionados; os órgãos intendentes de preservação do patrimônio, fiscalização, conservação, etc., historiadores de arte, professores acadêmicos, associações profissionais, e financistas – colecionadores, galeristas, marchands e representantes de vendas. Tudo isso está entre nós e a obra dentro de um museu ou de uma Feira.

The Council of the Royal Academy selecting Pictures for the Exhibition, 1875, 1876

“The Council of the Royal Academy selecting Pictures for the Exhibition”, 1876. Charles West Cope (Inglaterra, 1811 | 1890).

Todos esses profissionais são submetidos à própria disputa de seus interesses, um jogo onde cada um representa uma força. Quando esta é exercida sob um título ou cargo (doutor, crítico, curador ou diretor de museu), se torna agente de legitimação artística. Se cada um desses agentes possui uma opinião pessoal, ela não se baliza por sua própria subjetividade, mas pela regulação de um jogo de forças que não se dá por justaposição, e sim por meio do conflito dessas forças, onde quem ganha é quem tem mais poder – não quem tem mais bom gosto. “Gosto” não tem nada a ver com uma obra estar em um museu, ou ser estudada num curso de graduação, ou numa pesquisa acadêmica, ou numa revista.

Gosto é o último fator, aquele que se estabelece no contato entre o público e obra, e só é levado em conta efetivamente “após” ter passado por todo um processo de seleção, filtrado pelos discursos que legitimam aquelas forças.

Creio que a arte não deve exatamente ser regulada pelo gosto subjetivo; nem pode. Por estar sob influência de uma série de agentes (o Sistema das Artes, ou a rede, segundo Anne Cauquelin), ela se torna um processo “político”. Assim que uma obra de arte é mais do que somente expressão estética da subjetividade de um indivíduo – ela é um processo em meio a um trânsito de forças e interesses por vezes conciliatórios, por vezes excludentes. Quando é vendida ou exposta, a arte está sujeita ao domínio da especulação financeira, pois uma obra material é imediatamente um produto numa economia de produção, e funciona fundamentalmente como mercadoria num regime de circulação de mercadorias. E assim como a mercadoria, a obra de arte é também um processo. Ao passo que advém de um processo longo, aciona também ordens de pensamento e discurso (inclusive de gosto); é suscetível e suscita transformações, mediadas por uma correlação de forças mais ou menos determináveis.

Evidente que a arte é mais do que produto da cultura material – ela também pertence ao mundo do simbólico, é sua extensão visível e síntese de subjetividades adensadas e realizadas materialmente. O campo do discurso, embora pareça autônomo, emerge desse caldeirão como o vapor da água fervente. O discurso é volátil, difícil de determinar, mas tem origem na obra enquanto processo da cultura material e simbólica.

A obra artística no entanto, não deveria ser somente emulação de discursos. Penso a obra plástica como o próprio “balizador balizado” pelo processo social de cultura e o discurso apenas como um referencial apenas; como uma outra realização estética, uma forma de representação específica, que pouco tem a ver com as Artes Visuais em si, e cuja influência deve ser relativizada na apreciação da obra plástica a fim de não conspurcá-la, como as preferências de paladar não alteram o sabor de uma sopa.

francois-biard-cuatro-horas-en-el-salon-1847

“Quatro Horas no Salão”, 1847. Francois Biard (Lyon 1798 | 1882)

Uma característica da arte contemporânea do mainstream é a ausência de uma ‘dialética negativa’. O normal é que aquelas pressões institucionais em forma de opinião especializada expressa pelos curadores guiem o “gosto” popular, e este reincida sobre as forças da instituição.

Porém quando a arte é virtualmente tida como uma questão de “gosto pessoal”, a anuência de um público que aceita obras feitas por crianças e a consideram “profunda” – validando qualquer coisa que esteja em uma Feira, num salão ou Bienal – legitima os interesses pessoais dos agentes do sistema das artes. O único gosto que realmente conta chama-se a lei do mais forte, e assume a forma de “curadoria”.

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