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Texto de crítica da Exposição “Uma Nova Primavera” de GREGÓRIO BRUNING, que teve abertura na Galeria MÍMESIS neste sábado 25 de Janeiro.

Mesmo esta breve seleção dentre as mais de 700 fotografias analógicas realizadas por GREGÓRIO BRUNING da ocupação Nova Primavera poderia parecer anacrônica sem uma contextualização.

Um paralelo com o cinema é um elo possível que a situa na contemporaneidade por via de um distanciamento histórico, ainda que conjeturado… O obra audiovisual que inaugurou o cinema – “Empregados deixando a Fábrica Lumière” de 1895, assim todos os filmes dos irmãos Lumière, causaram em seu tempo tal comoção, que era comum os presentes (ainda não havia “espectadores”) fugirem aos gritos da sala de exibição, flagrados por sua vez pela câmera indiscreta da ilusão cinematográfica. Nosso paralelo aqui, porém se dá com sinal invertido: o que na produção dos Lumière era desesperador pelo inusitado do meio (o cinema), na presente exposição é desesperador pelo inusitado do fim – que é o real.

Comparo fotografia e cinema pela proximidade entre os processos de produção e recepção. Dziga Vertov, num contexto onde se pudera materialmente “editar” a realidade (vivia-se então o momento mais plenamente democrático da História) criou “narrativas” expressas pela mera justaposição de imagens: um cinema puro. Mas a imagem fotográfica é mais do que mero discurso – é um “testemunho”. Produz tal fascínio pela sobrecarga mimética agregada nela, que se apresenta como imediata, “relato sem mediação”: a própria realidade em si, que dispensa condição de verdade.

Slavoj Žižek se refere ao cinema como a arte da perversão, uma vez que não apenas nos mostra o objeto do desejo, mas nos ensina como este é construído. Sendo arte das aparências e fantasias, replica a própria compleição da realidade; diz-nos que ela é um constructo ideológico, social e simbólico; deflagra a natureza “editável” do real. A ficção cinematográfica, “mais real que a realidade”, se faz necessária para a compreensão do mundo hoje, por encerrar uma dimensão crucial para a qual não estamos preparados para ver dentro da nossa própria realidade. Isto se dá porque o Real contrasta com a linguagem; entre ambos há sempre um hiato, cuja intersecção é um vazio. O Real não é redutível à linguagem, ao mundo do Simbólico (imagens, fotografias, músicas, poemas, etc.) – é subsumido por ele.

Voltemos à rejeição dos presentes aos filmes dos irmãos Lumière. Como essa absoluta inversão se deu – se o horror daqueles primeiros espectadores foi justamente o de se depararem com esta realidade traumática negada pela consciência; de que forma essa mídia, então absurda a ponto de causar pavor, se tornou um substitutivo imprescindível para a compreensão do Real, não é o que nos preocupa; mas indagar acerca do processo intermediário e intermitente que a fez possível: processo, sem dúvida, constituído de um câmbio permanente com a fotografia (seja através do cinema, seja da mídia em geral). E aqui retornamos à exposição Uma Nova Primavera.

Ao “registrar”, ela relata a dinâmica de uma ocupação urbana que “cria um testemunho” sem o qual o real deixa de ser perceptível: é uma mediação visual sine qua non – nos informando pouco sobre um contexto específico, mas produzindo um discurso de “aparências” geradoras das condições de manifestação do real. As imagens que vemos aqui foram agrupadas por planos de ordem subjetiva e objetiva (que na realidade acontecem dialeticamente). Tomamos certo cuidado com a cronologia (que na realidade cotidiana dos ocupantes não se opera, fato que logo se depreende de seus discursos). A disposição no espaço da galeria adotou a presença no enquadramento de um ou mais indivíduos na foto – isolados ou em conjunto, flagrados na intimidade ou ação coletiva (o que na realidade não procede, pois nunca se é flagrado em absoluta solidão, dado a projeção do “grande Outro” social, quando não é o isolamento interditado pela mera presença ativa do fotógrafo).

O fator diferencial é que estas crianças, mulheres e homens não são desconhecidos; estas paisagens não são lugares (nem “não-lugares”) pelos quais Gregório passou; as casas não lhe são alheias, nem estranhas. Se fotografias são aparências que não constituem “o real” (no sentido Lacaniano, ele sequer existe) – mas conduzem a uma ficção, como se diz “pós-modernamente”, diferentemente da natureza discursiva pós-moderna, esta ficção torna-se uma possibilidade consequente e real no campo da arte, na medida em que deixa de ser utópica. A utopia é “lugar nenhum”; porém a arte militante passa a existir para além do discurso quando se radicaliza em sua expressão: ou seja, quando supera os limites da indagação semiótica e filosófica (linguagem) de tempo e espaço para se materializar no universo fenomênico da história. O ser só existe em seu extremo. Intervindo no real para dele extrair o simbólico (a dita ficção utópica), a militância do artista, no ato de “criar” este real, constrói o “lugar e o tempo da|na arte” – e a faz existir.

Existir, nos tempos que correm, é uma audácia. Aquele que radicaliza é hostilizado pelo ecletismo dos que se dizem democratas e, em nome da liberdade, defendem, como possibilidade única, a utopia. Em nome desta liberdade, e da defesa de direitos de fato menos factuais e mais de direito, pois que na prática nunca se realizam; em nome, enfim de nos vermos livres para sempre de ditaduras (aquelas, de esquerda, que se consumaram no passado…), de 85 até 2012, 1.568 foi o saldo de vítimas mortais no meio rural entre camponeses despossuídos pela disputa da terra no Brasil[1]. Aqui cabe perguntar: ocupar para existir é ser radical? Se qualificamos de radical a conduta desses que morreram em nome da luta pela vida digna sobre a terra, que diremos de seus assassinos? Os “mornos são vomitados do corpo de Deus”, parafraseando o Apocalipse em que João em Patmos se dirige à igreja de Leodiceia[2], exortando os fiéis à ação: “quem dera fosses frio ou quente!”

Em que pese o MST nesta semana completar 30 anos de existência[3], o problema da aparente ausência de terra num país continental não apenas permanece: expande seus conflitos até às zonas urbanas. Em Curitiba e Região Metropolitana mais de 90 mil famílias vagam sem sem-teto pelas ruas, em habitações precárias, beiras de rios e áreas irregulares, no mesmo instante em que mais de 70 mil domicílios permanecem vazios na cidade[4]. Hoje, a Fundação FipeZap[5] aponta que nos últimos doze meses o índice de venda de imóveis teve valorização de 37,3% em Curitiba (o maior do país no período): podemos imaginar o impacto desta lógica nada ficcional na equação real do cotidiano daquelas e de outras centenas de famílias que se somarão à massa dos condenados na terra. Só uma profunda e suspeita cegueira impediria entrever interesses de especulação e políticas urbanas inflacionárias, cujas consequências se veem nestas fotos: consequências catastróficas criminosas.

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Mas muitos se levantam contra a injustiça. Organizadas no MPM | Movimento Popular por Moradia, 400 famílias sem-teto ocuparam, em setembro de 2012, um terreno na Cidade Industrial de Curitiba reivindicando moradia e um programa habitacional, desde o início acompanhadas pela atuação militante de GREGÓRIO BRUNING, durante os dezesseis meses de luta política que se seguiram até o presente. Em meio à primavera esta flor surgiu, vermelha… “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.

Mas tudo isso pode ser contado de outra forma…

Link para fotos da Exposição: https://www.facebook.com/media/set/?set=a.648717248519689.1073741848.357069617684455&type=1&l=a2a929332d


[1] Relatórios Conflitos no Campo Brasil 2009 a 2010| CPT Comissão Pastoral da Terra; organização e seleção: Antônio Canuto, Cássia Regina da Silva Luz, Isolete Wichinieski – Goiânia: CPT, ISBN 978-85-7743-176-2.

[2] Apocalipse 3, 14-16.

[3] 22 de Janeiro de 2014

[4] Dados da Fundação João Pinheiro (2007).

[5] Acessado em 24 de Janeiro | 2014 <http://www.zap.com.br/imoveis/fipe-zap/&gt;

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