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Hoje encerra a Mostra Espaço Arte Alemanha na Casa Andrade Muricy. Não pude me furtar a algumas observações acerca do pequeno (e alucinado) texto curatorial.

Já a primeira oração “A Europa se integra” – assim, sem conjunções, como afirmação categórica, é um oximoro. (Trata-se de uma mostra alemã, organizada por instituições alemãs, bem como a sua curadoria: é a versão de vencedores, portanto… Fiquemos de sobreaviso!).

A Europa só se integra na aparência, e para os malversados. A zona do euro é uma integração meramente econômica, que sofre as contingências de qualquer relação financeira entre países. Vide o nosso MERCOSUL, que no ano passado assistiu de camarote (a) um golpe de Estado no Paraguai a fim de poder com isso justificar sua expulsão e a consequente assimilação da Venezuela ao bloco – a que o Paraguai se opunha. O Paraguai é um dos fundadores do MERCOSUL, porém… a Venezuela tem petróleo, então: picas pra vocês!

Os países da Europa nunca superaram culturalmente sua genealogia de cidades-Estados. Exemplos icônicos são Espanha e Itália, de fato mais “expressões geográficas” que Unidades Federativas. A Espanha se divide em Cataluña, Galícia e País Basco, cada qual reivindicando uma língua, uma cultura e, portanto, uma institucionalidade independente (submetendo-se forçosamente a uma política central que é ainda uma monarquia!). A Itália, onde convivem 54 dialetos, não se encontra num só país e finge-se um Estado constitucional centralizado. Outro exemplo é a Irlanda, cujo norte nunca aceitou a coroa inglesa e onde após 97 anos da Revolta da Páscoa atua ainda o Irish Republican Army – IRA (ou será que se esqueceram, e o mero decreto da extinção da sigla extinguiu também o sentimento de ódio à Inglaterra por parte dos irlandeses?).

A ocasião não faz o ladrão: revela… É na crise que se percebem os verdadeiros inimigos, e foi na crise que a União Europeia expôs ao mundo seus verdadeiros laços de ‘integração” (só a curadoria da Mostra alemã é que não se deu conta): após chover dinheiro sobre os países terceiro-mundistas da Europa quando entraram na União, a generosa U.E. interdita-lhes a produção em nome do “equilíbrio da exportação”. Em Portugal, por exemplo, na década de 90 (quando algumas das obras da mostra estavam sendo produzidas), chovia maquinário aos agricultores e pescadores lusitanos… com a simples condição de que não produzissem. Pagava-se aos trabalhadores para não trabalhar durante a vigência do pacote que os incluiria à U.E. Enquanto isso, os pescadores importavam sardinha e os agricultores hortifrutigranjeiros. Findo o prazo, estavam sem pesca, o maquinário agrícola sucateado e sem insumos. Portugal migrou ao setor econômico terciário e tornou-se um país de serviços. Agora, durante a crise, a U.E. lhe empresta dinheiro… e isso ajuda a quebrar o país! Com juros exorbitantes, os cortes aos parcos recursos dos já empobrecidos filhos do Lácio ferem cada vez mais fundo. Antes da U. E. ainda havia produção a exportar… Onde está mesmo a integração?

E já que estamos a falar de nossas matrizes culturais e artísticas, rumemos à Grécia, que recebeu um gordo empréstimo da generosa U. E. (leia-se, Alemanha) em troca da compra de submarinos bélicos (!). Tudo o que os gregos não necessitam neste momento de crise são submarinos de guerra.

Sem precisar citar os vinte e um condados da Suécia e a conjuntura dos Balcãs (que os próprios europeus chamam de “terra da demência”), já se vê que “integração” não passa de uma palavra da moda…

A integração a que curadora se refere, quer dizer, a subjugação das tradições, etnias, costumes, enfim, da cultura criada ao longo dos séculos e que sedimenta a identidade e a autoestima das nações europeias está sendo à força cooptada por uma ordem única, hegemônica, senão totalitária: isso é o que quer dizer por detrás, e está contido na simples frase “a Europa se integra”…

Continuemos a ler o catálogo:

A Europa se integra, as regiões do mundo se aproximam, as fronteiras se abrem ao trânsito e às trocas. O antigo conceito de cultura como critério de diferenciação se torna obsoleto na medida em que calores e características distintivas se assimilam. As peculiaridades e os padrões nacionais se transformam em virtude das mídias que ultrapassam as fronteiras e da consequente globalização da informação. O entrecruzamento e interpenetração das culturas trabalham na direção de uma “cultura mundial”. Esta cultura ainda não pode ser apreendida precisamente. Mas hoje é possível ler nas artes plásticas a maneira como ela poderia um dia se manifestar.

Paremos por aqui. Já basta de apologia indireta (senão puro cinismo).

Salvo se trate de pura ingenuidade de nossa parte, o que está a se dizer é: 1) que a cultura não é mais um critério de diferenciação porque os valores se homogeneizaram no mundo capitalista, e são hoje são produtos exóticos (mais ou menos como os ameríndios de quinhentos anos atrás…) e 2) evocando a debatida tese de Ezra Pound de que o “artista é a antena da raça”, a curadora termina afirmando que as artes plásticas são capazes de captar esse movimento global em pleno curso (mesmo tendo afirmado que esta pretensa “cultura mundial ainda não pode ser apreendida”).

Grosso modo, a diferença entre a “apologia direta” e a “indireta” é que esta última muitas vezes não sabe estar defendendo aquilo que ataca, e outras vezes afirmando por denegação aquilo que nega. Sim, concordamos com a cínica e imparcial análise da metrópole mais imperialista do mundo (no caso, Alemanha):

1) a Europa está a se integrar;

2) o conceito de cultura, do ponto de vista do capital, “não deve” mais servir como critério de diferenciação (aliás, nunca deve servir, a menos que se transformem em “virtude” – quer dizer, potencial especulativo);

3) o trânsito cultural impulsionado pela produção e consumo tende  a uma “cultura mundial” (que afinal jamais existirá).

Sobre o primeiro ponto já demos nossa opinião. Quanto ao segundo e ao terceiro, são óbvios e estão intrinsecamente ligados. Assim como a Art Nouveau, última grande escola artística, entrou em derrocada por estar em contradição com o sistema produtivo industrial (afinal, não se pode reproduzir um relógio de entalhe artesanal em escala fordista), assim as culturas locais não possuem sentido numa economia global – pela simples razão de que a alimentação dos quíchuas nos Andes não é a mesma que a nossa – mas, no entanto as empresas precisam vender a ambos os mercados o mesmo produto porque é mais barato e angaria-se maior lucro produzindo-se a mesma coisa para vários clientes diferentes do que se fosse o contrário. A equação é mais complexa, porém o resultado final é esse. Isso é o que está por detrás, e está contido na frase “o entrecruzamento e interpenetração das culturas trabalham na direção de uma ‘cultura mundial”.

O parágrafo seguinte inicia de forma interessante:

 (…) Pois na ponta deste processo está desde o início a arte contemporânea, cuja linguagem se ocupa há muito tempo de universalidade e comunidade. a sua internacionalização se revela claramente em acontecimentos artísticos criados crescentemente pr um público mundial e que, por isso, perdem cada vez mais as marca nacional. Na cena sem fronteiras da arte. A unidade global já se tornou realidade há muito tempo.

Ora, se ainda se acredita metafisicamente em “universalidade”, então a essência do homem é anglo-saxã. A presente exposição é composta de obras cujas referências são inteiramente em inglês ou alemão, que poucos brasileiros podem compreender (caso consigam ultrapassar a barreira teórica do conceitualismo). Aqui a curadora revela, pelo menos do nosso ponto de vista, que a apologia é francamente direta: coloca os artistas, que derivam da cultura, justamente como agentes desta não-cultura, desta massificação, desta pasteurização, desse malogro e fracasso pseudocultural que no texto é chamado de “cultura mundial”, já de berço tão fracassado quanto a world music.

Não estamos defendendo nenhum patriotismo. O patriotismo é a fórmula mais idiota da inversão dos valores de solidariedade humana e civilidade. O que é uma espécie de patriotismo às avessas, tão idiota quanto ele, é a chamada “globalização”, que parece o contrário, mas redunda no mesmo absurdo: enquanto o patriotismo exclui o resto do mundo numa xenofobia voltada para a cultura de um país que olha só para si mesmo e assim tende à desagregação, a “globalização” ignora diferenças e simula uma integração global que não existe, tornando os países vulneráveis a um controle centralizado (por mais que se fale de um poder diluído e descentralizado).

Do terceiro parágrafo, são curiosas apenas as arrebatadoras frases iniciais (o restante do texto é propaganda turística alemã e deles não temos sobre o que falar):

 (…) Em nosso planeta, os artistas são nômades espirituais que vão de um lugar ao outro para realizar suas visões. Eles sãos os pioneiros dos global players, os peregrinos em movimento entre as culturas estáticas no presente pós-moderno, desprovido de fronteiras temporais e espaciais. (…)

Aqui a curadora confunde realidade e ficção científica. Nesta delirante descrição do artista e da realidade simplesmente não há lugar para 99% dos artistas latino-americanos. Para estes o mundo é concreto, como a realidade. Se querem se deslocar de um lugar a outro, têm de comprar uma passagem de avião porque para estes o espaço existe. Se querem estudar, têm de dividir seu tempo entre os filhos e o trabalho, porque para estes o tempo existe – e é exíguo.

Imagem: Candice Breitz | Factum Kang | 2009 | Instalação de canal duplo, duração 69 min, 10 seg. Comissionado por A Usina de Energia Edições Toronto. (Trata-se de um vídeo de 69 minutos onde se vê o depoimento narrado em inglês de um desenlace homoafetivo)

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