Estive na segunda vinda à Curitiba da exposição O Fantástico Corpo Humano, e depois fui a um museu. O que é estarrecedor é o fato de que a exposição era em um shopping. No Museu, se minha pessoa conta como gente, havia 5 pessoas – dois vigias, dois estagiários do Museu e eu. Era um domingo de tarde, ensolarado. No shopping não consegui uma mesa vaga para almoçar, enquanto no MuMA (recém ressuscitado Museu Municipal de Arte do Portão), só eu. Eu e mais ninguém, eu e um vazio maior: o vazio da arte que ali estava – então compreendi porque as pessoas preferem ir ao shopping. Afinal não é apenas na conta da alienação capitalista que lançaremos o desinteresse do povo brasileiro pela arte. A conta deve ser equacionada também pelo revés: o desinteresse dos artistas pelo povo brasileiro.
Durante o marco mais cruel da Ditadura Militar havia uma produção intensa nos campos da arte: Zé Celso e Vianinha com o Oficina; o Arena; o Opinião; a hoje “máfia do dendê” com o Tropicalismo; Chico Buarque e Ruy Guerra construindo um dos melhores capítulos do teatro brasileiro, etc. Hoje, em plena “liberdade democrática”: uma arte vazia dentro de um museu vazio.
Mudei muitas concepções nos últimos anos, e uma delas foi o olhar desdenhoso para a arte como “entretenimento”. Acho que hoje o melhor que se possa fazer é entreter o público – este, degradado em seu senso estético, violentado pela mídia, estupidificado por gerações de anormais no poder. A arte deve entreter, divertir, e entretenimento e diversão não são necessariamente sinônimos de anomalias, BBB, Rede Globo, e revista Caras. Porque, se não entretém, faz o quê? Gera consciência? Mas quanta consciência pode ser gerada num museu vazio?
Tratava-se de uma exposição de arte contemporânea. Em geral, as pessoas não a entendem – mas isso não é sintoma de burrice. Seres humanos oprimidos por um regime de produção capitalista têm dificuldade em compreender as transformações da arte, endógenas à concepção moderna; seres alienados por uma produção imagética instrumentalizada para o consumo reagem quando se frustra nelas a expectativa de encontrar uma imagem dada e realista, e não aceitam imediatamente sequer a ideia de que a figuração pode ser relativizada. A menos que eu fosse um cínico de primeira hora, esperaria que os brasileiros assimilassem facilmente as proposições e possibilidades interpretativas de obras contemporâneas calcadas em teorias herméticas a que não têm acesso.
O que as pessoas que não são artistas pensam é o seguinte: “a arte tem que ser bela, e tem que causar sensações; se tiver que ler muito e estudar filosofia para entender, então não é arte”. Tenho de concordar com essa concepção: afinal, os shoppings estão cheios e os museus, vazios.
O grande sociólogo Antônio Gramsci diz algo soberbo: “Todos os homens são intelectuais (…), mas nem todos desempenham na sociedade a função de intelectuais”. Nessa formulação, as múltiplas dimensões humanas são captadas na consciência de um indivisível homo faber | homo sapiens. Gramsci acessa uma lógica primária de pensamento que a arte contemporânea parece não perceber: a noção de hegemonia. Grosso modo – numa sociedade dividida, vence a razão da força, e não a força da razão. Enquanto não houver fissuras no aglutinante social (ou seja, na visão dominante de uma classe dominante), a lei do mais forte vencerá sempre. Conclui-se que o papel do intelectual, do artista, é, em primeiro lugar, elidir a distância ilusória entre ele e os demais.
Pois bem. O artista trabalha justamente com “mediação”. A mediação é o método de seu ofício, seja qual for (pintura, fotografia, design, moda, música, teatro, etc). A arte como viés comunicante, tem de operar constantes mediações em todas as fases de seu processo constitutivo. Desde a concepção da obra, é preciso pensar o exterior (ainda que a partir da subjetividade do artista). Esse pensar o exterior é encontrar nele recursos de expressão. A produção, etapa conseguinte, é justamente o conduto entre a expressão interior e exterior a partir daqueles recursos (a técnica) – ou seja, o artista tem de encontrar um “meio de expressar” que realize por si só a expressão. Esta é comunicante: tem necessariamente um caráter mediato (não “imediato”) porque é um “entre”: é a obra em si, a transição entre a concepção do artista e a recepção do público. A ausência do artista não é o que faz a arte desaparecer: sem público é que ela deixa de existir.
O que vi naquele domingo no shopping me impressionou muito mais do aquilo que vi no MuMA: embora plastinados os cadáveres – tanto na Exposição, quanto nas lojas e corredores do shopping – havia ali mais vida que naqueles amplos corredores do museu…